"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

4.23.2006

Síntese e Plasticina *

dixitque Deus fiat lux et facta est lux
et vidit Deus lucem quod esset bona
et divisit lucem ac tenebras
Genesis

The mystery of the world is the visible, not the invisible
Oscar Wilde

Quando comecei a pensar nisto da síntese(*) - porque, diga-se em abono da verdade, a escolha do tema é do exclusivo mérito de José Bragança de Miranda - e apesar das muitas coisas sintéticas que à conversa vieram: drogas (medicinais e ilegais), sintetizadores (de som), plásticos e plasticidade, genoma, etc., certo é que, por defeito e feitio, logo me afundei nas imagens de síntese - ou seja, as imagens geradas pelo dispositivo da fotografia, pela técnica do vídeo, pelos programas de computador - moldadas, manipuladas, truncadas e, porque não, falsificadas? Mas não é isto um pleonasmo? A imagem não é, em si, uma falsidade?

Certo e sabido, a imagem não é a coisa mas a sua representação; "uma introdução ao escândalo do horror, não ao próprio horror", diria Barthes. Como reprodução é fantasmagoria pois faltam-lhe as qualidades ou componentes daquilo que reproduz, logo, é histórica e quimicamente falsa; é a síntese depois da coisa (primeiro momento) e do acto da coisa ser vista (segundo momento) e que resulta nesse algo novo, já do domínio da linguagem. Como produção, como é o caso da arte e da poética, a sua natureza está irremediavelmente presa ao especular pois é o próprio discurso do seu aparecimento que a legitima como síntese.
Imaginemos porém que todo o projecto da imagem teria pretendido libertar-se do artíficio: poder-se-á encontrar imagens que são puras, em que a luz permaneça, por sortilégio, inalterada? Nem por isso. Vendo bem, a camara oscura de Leonardo inverte as imagens e distorce-as nos limites do enquadramento, sendo então necessário inventar o aparato fotográfico que, operando sobre a luz, viesse a produzir uma imagem mais analógica (por analogia) com a realidade. Mas se analógico é bom, digital é muito melhor. E onde antes existia um mecanismo que imprimia analogias, agora existe um mecanismo que transforma a luz em... mais luz, ou melhor, outra luz. O real, partindo do pressuposto que existe, verte-se, para a imagem, num problema de matemática (operação simbólica). Ao contrário da vida que se esvai a cada momento que passa, sendo equação lógica, a imagem pode então ser refeita, recomposta ou repetida a qualquer instante e sob qualquer pretexto: estritamente técnico mas, o mais das vezes, social, estético ou político.
O aparato digital, porque realiza uma representação numérica da representação analógica (uma meta-representação feita de luz) e a regista de forma a manter-se inalterável por milénios, descontextualiza o diacronismo em sincronismo e um dos mais velhos dogmas da humanidade, "a história não se repete", cai por terra. Nas margens do rio, um Hieraclito cyberpunk deleita-se com a recomposição perfeita dos pixéis das águas agora eternas. Ele, Hieraclito, nunca é o mesmo; mas o rio, ou a experiência, pode repetir-se, indefinitivamente e rigorosa até ao mais infímo pormenor.
Ao contrário de um certo saber generalizado, ou senso comum, a imagem digital não é mais próxima ou mais genuína. Ela é, isso sim, uma mentira perfeita e, assim sendo, facilmente agenciável.

"Arte Molecular" ©Nuno Micaelo


Tal como numa composição não-linear - uma harmolodia de Ornette Coleman, p.e. - os sons se emancipam uns dos outros, as imagens síncronas também são mais livres e independentes. Mas que ganhamos nós com a independência das imagens? É bom não cair no exagero do "já nada acontece ao homem, tudo acontece às imagens" de Deleuze porque isso seria negar o óbvio: que, ainda antes das imagens que agridem, manipulam, violentam, desmascaram, seduzem... nós somos os agredidos, os manipulados, os violentados, os manipulados e os seduzidos. Ou, como postulado por Heinrich Hertz, "the consequences of the images will be the images of the consequences".
Susan Sontag exprimiu esta ideia de forma convincente: "Dizer que a realidade se torna num espectáculo é um provincianismo de cortar o fôlego. Dizê-lo é universalizar os hábitos de visão da reduzida população instruída que vive na parte mais rica do mundo, onde as notícias se converteram em entretenimento". O que acontece às imagens é o que acontece ao homem - talvez não aos vinte por cento da população mundial que vive acima do limite da pobreza mas certamente a todos os outros.

A "sociedade do espectáculo", para utilizar a terminologia dos filósofos franceses a quem Sontag se refere, indica-nos, então, a emergência desse novo organismo que usa fibras ópticas e ondas oscilatórias por veias; os media como sangue; caminha vertical (de cima para baixo) e ubíquo; alimenta-se da nossa credulidade e da nossa dor; e mostra-se-nos com a cara sedutora de Medusa. Transformados em pedra, emocional e inteligentemente, nós, os burgueses, copulamos com o monstro sem perceber que "man thus becomes the sex organs of the machine world just as the bee is of the plant world, permitting it to reproduce and constantly evolve to higher forms" (M. McLuhan dixit). Simbiose, síntese, perfeita entre o maquinal e o orgânico: sim, porque as imagens provêm, primeiramente, da técnica.

"Transformers" ©Patricia Gouveia

O que separa a visão da imagem é exactamente a técnica (leia-se, "técnica", como extensão da consciência). Se quase todos os animais vêem, dificilmente se poderá chamar ao que vêem imagens. As imagens são operações (lógicas, simbólicas) mais ou menos distanciadas do real, logo as imagens só existem se forem autónomas e independentes da própria visão; independentes do fenómeno em que "o que é visto" se extingue instantaneamente noutra coisa, uma acção, talvez um salto de língua de sapo agarrando um insecto, talvez um vôo picado de àguia.
António Machuco Rosa, em páginas que se seguem, explica-nos que "o cérebro é um caso de um tipo geral de máquina". Para o tema que nos interessa, esta é a primeira "máquina" capaz de gerar imagens. Apesar de estas poderem suscitar diferentes análises, não poderão alguma vez ser o que são, sem "um tipo geral de técnica" por detrás. Para além do sentido da visão que se desenvolve entre o olho e o cérebro e que pode ser interpretado como um acidente natural, há um mecanismo de registo que importa realçar. Chamar-lhe memória é uma inexactidão intíma e momentânea, cujo conteúdo meramente mecanicista se dissolve na história: "aquilo que se chama memória colectiva não é uma lembrança mas uma convenção" (Susan Sontag dixit). Não uma mas várias convenções: a poética, a arte, a arquitectura (uma forma muito especial de fixar imagens no espaço), a história (uma forma muito especial de fixar imagens no tempo), os interfaces, os media, etc., etc. Desde Lascaux até à Realidade Virtual, a história das imagens é marcadamente uma fuga à "analogia", a um registo desprovido de crítica, e elas tendem a ser, de moto próprio, mundo de significados e, consequentemente, mal-entendidos e subtilezas.

"Flatland" ©Patricia Portela

Aldeia global, sociedade do espectáculo, indústria do entretenimento: vislumbres desse pesadelo - como lhe chamou Joyce - que é a história. Tal como as imagens de si, a história é plástica e sintética. Fragmenta e recompõe-se (como tão bem mostram os filmes de Kusturica) a cada momento. Momentos violentos quando, na emergência das novas formas, pretende, debalde, recuperar as velhas imagens (como demonstra a desorientação violenta do poder neoconservador da América). "Wars necessarily result as misbegotten efforts to recover the old images" (M. McLuhan dixit).
Daqui a algumas páginas, Catherine Malabou irá perguntar, a propósito das imagens do cérebro (ou, melhor, da actividade cerebral): "tratar-se-iam de imagens que, incapazes de apresentar aquilo de que são imagem, revelam, pelo contrário, ser imagens explosivas, destruindo o seu próprio substrato?" Apesar da descontextualização que faço da pergunta, é possível imaginar que as imagens "incapazes de apresentar aquilo de que são imagem", possuiem uma capacidade nociva para destituir a história.
Vivemos, indubitavelmente, sob signo do prodígio da técnica. No cinema, os actores interagem com robôs sobre fundos de computação gráfica. O hiper-real não é mais que uma imensa ironia idiomática já que nasce sintético, como em Final Fantasy. Mesmo no cinema de expressão "realista", o nariz de Nicole Kidman (em As Horas) é digitalmente alterado, de forma a sintetizar o seu rosto com a Virginia Woolf que representa. Na televisão, o ecrã subdivide-se em vários planos com informações distintas: o apresentador, a legenda com os cabeçalhos, a reportagem como imagem de fundo: no final, uma imagem complexa com várias formas de leitura (textual e visual) e com inúmeras possibilidades de recontextualização. Já não é exactamente uma imagem de televisão, uma janela, mas um desktop mesmerizante. Até a guerra, esse acontecimento merecedor do maior rigor informativo, mescla imagens de natureza insondável e aproxima a sua técnica narrativa - e estética - dos vídeojogos, imagens simulacro por excelência.
Tal como anunciou McLuhan, depois da política virá a propaganda. Já chegou. E apesar da boa vontade de alguns, nomeadamente de Sontag quando diz "ninguém que realmente pense na história pode levar a política completamente a sério", não há modo de negar que as imagens são, hoje mais do que nunca, a plasticina da história, amassada a bel prazer pelos desejos, necessidades e ambições do momento.
Resta-nos, quase só, a suspeita. A desconfiança, - a autoridade por excelência na imagem contemporânea - como escreve Victor Flores adiante, instalou-se definitivamente na história. Se já não podemos "ver para crer", então que prova nos resta?
Mas o projecto da técnica até pode ser muito mais ambicioso: o real, se existe, está definitivamente representado por um simulacro que não o aceita como tal, mas promove, cega e voluntariosamente, uma versão melhorada dele. Por retroacção, será que a perfeição pode instituir-se a partir da representação? Ou, dito de outra forma, até quando nos será possível viver o real?

(*) texto escrito para o catálogo do Festival de Imagem de Oeiras 2004, subordinado ao tema Síntese|Synthesis

Ligações:

António Machuco Rosa
(PDF!)
Catherine Malabou
José Bragança de Miranda
Marcos Novak
Olu Oguibe (inclui música de Fela Kuti!)



 

Photobucket - Video and Image Hosting My events (curator/producer):

>Projecto Ibérica (Lisbon + Madrid 1988, new video creation from the Iberian Peninsula show and conferences)

>Convention Zero (Lisbon, 1996, science-fiction and new media convention, w/ Derrick de Kerckhove, Olu Oguibe, Leo Ferreira and Industrial Light & Magic)

>Art+Technology=Multimedia (Lisbon, 1997, multimedia workshop, w/ Andrea Steinfl and RealWorld)

>Robotica Tribal, by Chico MacMurtrie and Amorphic Robot Works, S. Francisco (Lisbon, 1997, show and exhibition)

>Convention 1.0 (Lisbon, 1998, new media convention and Internet workshop for youths, w/ John Perry Barlow and Derrick de Kerckhove)

>Festival do Fim (Lisbon, 1999, new media and music festival, w/ José Bragança de Miranda, Coldcut, Ninja Tune et al)

>Oeiras Image Festival 02 - "Under Surveillance/Sob Vigilância" (Oeiras, 2002, new media festival, w/ Manuel De Landa, Geert Lovink, David Wood, José Bragança de Miranda et al)

>Oeiras Image Festival 04 - "Síntese/Syntesis" (Oeiras, 2004, new media festival, w/ Marcos Novak, Catherine Malabou, Olu Oguibe, José Bragança de Miranda et al)