"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

2.06.2004

Videojogos como Arte

Perguntam-me se os vídeojogos são arte. Obviamente sim. Mas não todos e a qualquer momento; apenas alguns e em determinados instantes. Se eu, hoje, pendurar um quadro branco na parede não estarei a fazer arte – serei, sobretudo, preguiçoso. Mas em determinado momento esse gesto teve uma intenção e um contexto que lhe atribuiram determinado valor.
Como em todas as expressões fortemente marcadas pela indústria -- o cinema, p.e. – os bons jogos submergem num emaranhado de cópias e citações em nem sempre se torna fácil identificá-los. Uma geração de franceses fez isso aos filmes do cinema clássico americano: identificou-os. Viram-nos e reviram-nos vezes sem conta e descobriram nalguns deles o toque único do autor. A Nova Vaga, surgida há mais de trinta anos na revista “Cahiers du Cinema”, teve como principal instrumento a memória: tinham visto os filmes todos e, como tal, eram fiéis depositários da História do Cinema. Viam um filme e com ele partilhavam a experiência de todos os filmes anteriores. Pode mesmo dizer-se que ver um filme exige que se conheçam todos os outros, e que a análise crítica necessita de um sistema de memória que contextualize e legitime cada novo acto.
Da mesma forma, num sistema de produção fortemente marcado por processos industriais como é o dos jogos, creio poder-se encontrar essas obras que são algo mais, que pretendem ir mais além e, neste caso específico em que lhes quero atribuir valor, conseguiram cumprir as suas pretensões. Obras das quais emana… uma aura. E a única legitimidade que aqui posso invocar é a de ser um jogador obsessivo, por cujos olhos passaram muitos pixéis da curta mas profícua História dos Vídeojogos.

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Mas recuemos um pouco nesta história para observar mais de perto o que é um jogo (passo agora a dizer “jogo” porque englobo os jogos de computador e não apenas os vídeojogos, termo especifico para os jogos de consolas). Possuirá ele as características que atribuimos a uma expressão artística? Primeira questão: tem uma linguagem própria? Sim, é uma obra audiovisual tout court: imagem, som e argumento; sendo que qualquer um destes elementos tem o seu valor intrínseco no excesso do todo final. A imagem pode aproximar-se da fotografia, do design e da ilustração ou a todas elas a um mesmo tempo. O som é, claro, música ou banda-sonora. O argumento todos sabemos o que é: a estrutura ficcional que determina o lugar de todas as coisas e a sua sequência no tempo. O mecanismo semântico aproxima-se da montagem, como no cinema, mas o sema em vez de fotograma é uma nova forma de escrita: o motor gráfico (o código informático que, aliado a hardware de renderização produz as imagens. Renderização, do verbo inglês “to render”, é outra forma de dizer “tradução”; a tradução dos bits de código fonte em pixéis). Do mesmo modo como a câmara fotográfica transforma o quase intangível, a luz, num corpo: a fotografia; o motor gráfico transforma electricidade em representação: o ecrã.

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Tal como a fotografia repetiu, inicialmente, os gestos da pintura ou o cinema se fund(ament)ou na arte do teatro, a aproximação dos jogos ao cinema parece-me óbvia. É no génio da montagem que vislumbramos o essencial da expressão artística através dos jogos. Voltaremos a este tema um pouco mais adiante.
Segunda questão: a interactividade permite a sobrevivência do autor enquanto tal? Não sejamos inocentes neste aspecto: os jogos são dos discursos mais manipuladores que se conhece. Para cada acção/decisão do jogador existe uma resposta previamente inscrita no código. A liberdade é aparente: a navegação ou resolução do jogo poderá resultar numa experiência emocional comovente mas, tal como nos livros, o final está na última página e não a meio do terceiro capítulo. Um esquema recorrente é a passagem de nível: ao aparente livre arbítrio do jogador numa certa cena ou espaço, sucede-se uma porta estreita por onde ele terá de passar para chegar ao nível seguinte. É assim, geralmente, que a escrita dos jogos determina o caminho percorrido pelo jogador. O autor está em controlo da sua obra e, como sempre, a felicidade de quem vê, quem ouve ou quem vive é a da interpretação. Apenas essa (*).

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Estabelecidos os parâmetros da análise, faltará identificar agora os corpos. Escolhemos dois jogos, muito distintos entre si. Separados em nove anos no tempo, um é americano e o outro japonês; um joga-se no computador, outro na consola; ambos, irrepreensíveis nas virtudes da imagem, som e argumento, relevam-se, sobretudo, pela montagem. O primeiro, “Myst”, data de 1993 e foi criado numa garagem pelos – então muito jovens -- irmãos Miller, Robin e Rand. Neste caso não se trata do trabalho de uma grande equipa, de designers a programadores, como é natural no sistema de produção de jogos. Mas é uma autoria bicéfala, o que abre novos entendimentos da identidade do autor, algo do qual não falaremos agora.
O primeiro jogo, “Myst”, conta uma história complexa que se desenrola num universo imaginário mas coeso, com regras, raças e línguas próprias (de certa forma, o mesmo que Tolkien fez com Lord of The Rings). É ainda hoje o jogo mais vendido de sempre e considerado o grande catalizador das vendas de leitores de CD-Rom, sinal de que o sucesso comercial não é sinónimo de vulgaridade; e não há livro de narrativa interactiva publicado que esqueça “Myst”.

Os irmãos Miller criaram uma nova forma de navegação no espaço tridimensional: uma série de imagens fixas que se sucedem como num diaporama quando avançamos em frente mas que, adicionalmente, podem ser basculadas para os lados, como se virássemos a cabeça para olhar à nossa esquerda e direita. Imagens com curvatura. Em teoria, cada uma dessas imagens dá-nos logo três possibilidades: seguir em frente, seguir à esquerda ou seguir à direita. Na práctica, as alternativas podem ser maiores e este mecanismo inclui ainda o zoom sobre pormenores até ao close-up. Com belas imagens contando uma intricada história, o maior mérito dos irmãos Miller foi a criação de um interface inovador, eficaz e capaz de transformar a fruição do jogo numa intensa experiência emocional. Sem pejo, poder-se-ia agora recordar Eisenstein (sem deixar de reconhecer que o génio na longa história do cinema terá outro valor que o génio numa infantil história dos jogos).

O segundo jogo, “Metal Gear Solid 2: Sons of Liberty”, é um vídeojogo (PlayStation 2) de acção que decorre num universo cyberpunk –inteligência artificial, ciborgues, etc. -- e data de 2001. O seu autor é Hideo Kojima, com elos contratuais muito sólidos com uma das principais empresas do sector, a Konami. Kojima possui um currículo impressionante; os seus muitos títulos são apreciados em todo o mundo por uma legião de fãs que os reconhecem como tendo a sua assinatura. Em mais uma analogia exagerada, digamos que Kojima possui a mesma liberdade, contratualmente explícita, que Orson Welles possuia quando foi para Hollywood.

E o que Hideo Kojima construiu em “Metal Gear Solid 2: Sons of Liberty” é uma obra transgressiva, entre o jogo e o cinema de animação. Com um argumento muito complexo, as acções bem sucedidas do jogador são recompensadas com sequências animadas de vídeo em que a trama é representada por actores virtuais, avançando cada vez mais na teia conspirativa do género cyberpunk. Kojima tem controlo absoluto sobre cada pormenor, desde a programação das cenas interactivas ao pictórico dos vídeos. Ele tem uma história para nos contar e mesmeriza-nos na ilusão de que jogamos com ele. Mais uma vez, num artíficio de montagem, somos levados a uma experiência emocional premeditada pelo seu autor.

Restará agora ao leitor dedicar-se a estas, e outras, obras, e verificar a validade do que aqui fica dito. Experimentar, como tantas vezes tenho dito, a impressão do joystick nas mãos, o deslizar do espaço tridimensional na retina e, eventualmente, a tragédia universal do game over.

(*)A interactividade é um assunto ainda pouco entendido e decerto não tema deste texto; aconselha-se a consulta dos textos de Roy Ascott e Bragança de Miranda -- no livro Ars Telemática, Claudia Giannetti, ed. Relógio d’Água, Lisboa 1998-- sobre a interactividade e arte.

[in Jornal de Letras]

 

Photobucket - Video and Image Hosting My events (curator/producer):

>Projecto Ibérica (Lisbon + Madrid 1988, new video creation from the Iberian Peninsula show and conferences)

>Convention Zero (Lisbon, 1996, science-fiction and new media convention, w/ Derrick de Kerckhove, Olu Oguibe, Leo Ferreira and Industrial Light & Magic)

>Art+Technology=Multimedia (Lisbon, 1997, multimedia workshop, w/ Andrea Steinfl and RealWorld)

>Robotica Tribal, by Chico MacMurtrie and Amorphic Robot Works, S. Francisco (Lisbon, 1997, show and exhibition)

>Convention 1.0 (Lisbon, 1998, new media convention and Internet workshop for youths, w/ John Perry Barlow and Derrick de Kerckhove)

>Festival do Fim (Lisbon, 1999, new media and music festival, w/ José Bragança de Miranda, Coldcut, Ninja Tune et al)

>Oeiras Image Festival 02 - "Under Surveillance/Sob Vigilância" (Oeiras, 2002, new media festival, w/ Manuel De Landa, Geert Lovink, David Wood, José Bragança de Miranda et al)

>Oeiras Image Festival 04 - "Síntese/Syntesis" (Oeiras, 2004, new media festival, w/ Marcos Novak, Catherine Malabou, Olu Oguibe, José Bragança de Miranda et al)