"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

12.05.2003

Os jogadores (I)

A notícia de que em 1998 (e pela primeira vez) o volume de negócios da indústria de jogos electrónicos americana ultrapassou o da indústria de cinema de Hollywood é, no minímo, desconcertante. Ou seja, dá que pensar, sem saber muito bem ainda o quê. Será bom? Será mau? Será que interessa?

Claro que interessa. Em primeiro lugar porque atesta a saúde de uma área muito específica do multimédia, quando a generalidade anda aos caídos. O «Doors of Perception» de Amsterdão foi este ano dedicado ao tema «play» (o termo inglês com o duplo sentido: jogar e brincar). O próximo Millia de Cannes (8 de Fevereiro) a maior feira do multimédia europeia, vai ter nos jogos a sua temática central. Sinais de que esta área está a gerar grande interesse e, tal como aconteceu à 9ª Arte, já deixou de ser olhada como uma actividade «menor» no campo da criação e da própria experiência.
Em segundo, e mais importante, porque o cinema -- mais que a literatura, o teatro ou os comics -- é o grande espaço ficcional de (quase) todos nós, pelo menos desde o final da II Grande Guerra. Mesmo a televisão -- soaps e telenovelas àparte -- tem contribuido para isso. Claro que a ultrapassagem dos jogos ao cinema pela faixa da esquerda é uma mera questão contabilística. Nesse preciso momento nada de extraordinário ocorreu. Mas serve de ponto de referência para algo que vem acontecendo desde há vários anos e agora toma forma nas nossas consciências: o imaginário colectivo desvia-se do cinema para os jogos.

(...)

Jogos tão diferentes quanto «Mortal Kombat» e «Super Mario» (e brevemente «Tomb Raider») tornaram-se longas metragens; enquanto um assinalável número de filmes derivaram em jogos: «MIB», «Batman», «Blade Runner», etc., etc.
Muito embora o ecrã promova a proximidade entre o cinema e os jogos, as diferenças entre ambas as experiências é notória. Onde no primeiro somos manipulados a bel-prazer de argumentistas, realizadores e actores; nos segundos somos protagonistas de cujas escolhas depende o desenrolar narrativo. O ponto de vista, sendo sempre na primeira pessoa, é nos jogos um ponto de vista controlado por nós e não pré-definido pela câmara. De uma visão endeusada (a do cinema) passámos a uma visão humana e activa. Há jogos onde podemos, inclusive, saltar de um ponto de vista para outro (como em «Spec Ops» ou «Rangers Assault», p.e.). Interactividade, dizem. Mas a constante evolução tecnológica provocou ainda outra distinção: o espaço dos jogos é, verdadeiramente, tridimensional. Ou seja, não é já o espaço que se desloca através do ecrã, somos nós que nos deslocamos no ecrã. Imersividade, digo eu.

(...)

A este propósito gostaria de aqui citar um pequeno trecho que escrevi já há alguns anos nesta página e que acabou por ser utilizado por Paulo Querido no seu livro «Homo Conexus (O que nos acontece depois de nos ligarmos à Internet)». O texto falava dos nativos (do Ciberespaço) tal como os baptizou John Perry Barlow e conta várias histórias curiosas com crianças, uma delas o meu filho Henrique:

«Há umas semanas atrás fomos ver os African Voices ao Palácio de Queluz. Passeámos pelos jardins labirínticos do Barroco, atravessámos a ponte do Jamor para o lado despido e pouco cuidado do jardim. Ao fundo, junto à auto-estrada, voltámos a cruzar uma ponte e regressámos à paisagem anterior, de jardins de sebes. E ele diz-me:
-- Olha, voltámos ao mesmo nível!»

(...)

A mensagem dos jogos está ainda por decifrar. Ao invés de sujeitos passivos confortavelmente sentados no escuro, talvez comendo pipocas ou talvez suando as palmas das mãos debaixo dalguma camisola; somos os heróis do force feedback e do dual shock, os músculos retesados de emoção e o palato pleno de adrenalina, agarrando-nos desesperadamente às três ou quatro vidas que nos restam e tentando ultrapassar mais um nível. Ainda é cedo para saber se nesse dia longínquo o Henrique estava apenas a forçar uma piada semiótica ou se, efectivamente, ele já não apreende o mundo do mesmo modo que eu e todos aqueles que nasceram depois do Sonic. Contudo, confesso que acredito nesta segunda hipótese, mesmo sendo incapaz de lhe prever as consequências.

(...)

Na semana passada almoçava eu com o Eduardo Geada, que para além de amigo foi meu professor na Escola de Cinema, e ele mostrava-se apreensivo com por esta mudança de paradigma narrativo -- do cinema para os jogos -- pese embora os patamares de Hollywood não serem lá grande coisa. Mas eu não estou de acordo.
Tal como o mestre (McLuhan) explicou, a mensagem dos jogos não é a violência de Carmageddon e Mortal Kombat ou a sexualidade de Lara Croft em Tomb Raider mas sim o efeito do feedback e do dual shock na nossa experiência.

A mensagem é a impressão do joystick nas mãos, o deslizar do espaço tridimensional na retina e, eventualmente, a tragédia universal do game over.

[in Blitz]

 

Photobucket - Video and Image Hosting My events (curator/producer):

>Projecto Ibérica (Lisbon + Madrid 1988, new video creation from the Iberian Peninsula show and conferences)

>Convention Zero (Lisbon, 1996, science-fiction and new media convention, w/ Derrick de Kerckhove, Olu Oguibe, Leo Ferreira and Industrial Light & Magic)

>Art+Technology=Multimedia (Lisbon, 1997, multimedia workshop, w/ Andrea Steinfl and RealWorld)

>Robotica Tribal, by Chico MacMurtrie and Amorphic Robot Works, S. Francisco (Lisbon, 1997, show and exhibition)

>Convention 1.0 (Lisbon, 1998, new media convention and Internet workshop for youths, w/ John Perry Barlow and Derrick de Kerckhove)

>Festival do Fim (Lisbon, 1999, new media and music festival, w/ José Bragança de Miranda, Coldcut, Ninja Tune et al)

>Oeiras Image Festival 02 - "Under Surveillance/Sob Vigilância" (Oeiras, 2002, new media festival, w/ Manuel De Landa, Geert Lovink, David Wood, José Bragança de Miranda et al)

>Oeiras Image Festival 04 - "Síntese/Syntesis" (Oeiras, 2004, new media festival, w/ Marcos Novak, Catherine Malabou, Olu Oguibe, José Bragança de Miranda et al)