"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

7.06.2003

O livro de Lara (Croft)

No princípio deste século, os jovens liam as histórias de Júlio Verne e fantasiavam com aeronaves e veículos ultra-rápidos. Quando cresceram, foi isso mesmo que construiram: aviões e automóveis.
Nas décadas de 30 e 40, descobriram a ficção-científica com os seus foguetões e viagens no espaço. Quando cresceram, criaram o programa espacial da NASA e foram à Lua.
Nos anos 50 e 60, foi a época de ler os mistérios tipo James Bond, conspirações governamentais, aparelhos miniaturizados de espionagem, robôs e criaturas mutantes. Por isso, vivemos hoje num mundo de robôs, clones, programas de encriptação e microchips.
Talvez o melhor modo de adivinhar o que os seres humanos vão construir no futuro próximo seja olhar para o passado mais ou menos recente e perceber as obsessões da juventude.
Esta é, resumidamente, a teoria que Douglas Coupland desenvolve no seu prefácio ao livro Lara’s Book – Lara Croft and the Tomb Raider Phenomenon.

(…)

E depois pergunta-se: "Que andam os miúdos a fazer nos dias de hoje? O que é, exactamente, aquilo com que os miúdos andam obsessos? Será um personagem particular? Um tipo particular de situação em que este personagem se envolve? Uma busca do tesouro? Uma jovem britânica envolvida numa caça gore-festiva e interminável a tesouros antigos? Hmmm. Isso faz-me pensar."
Coupland especula que esta geração construirá alguma coisa com um botão de ON. Esse botão, quando activado, fará essa coisa dizer Olá, eu sou a Lara!. E a mais não se atreve, nem nós aqui o iremos fazer.
Muito aprecio a tese de Coupland, ainda que o presente me apareça o mais das vezes inesperado e sobrenatural, sem qualquer raiz na memória. Lembro-me, igualmente, do aforismo invertido por John Perry Barlow: "o melhor modo de inventar o futuro é predizê-lo". Foi isto que fizeram os autores de ficção-científica em simbiose com aqueles que partilharam os seus sonhos. Uma comunhão entre a criatividade dos primeiros e a impressão – do verbo imprimir – das ideias no modo de pensar dos segundos. Não admira, pois, que vivamos no limbo de Philip K. Dick, desesperadamente em busca da nossa identidade em plena era cyberpunk. Amanhã viveremos no mundo de Bruce Sterling, William Gibson e Neal Stephenson. No ciberespaço, talvez apaixonados pela Matriz ou por um programa de inteligência artificial.

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Já aqui escrevemos que os jogos estão a substituir-se ao cinema como paradigma ficcional e narrativo, tal como este sucedeu ao livro do início do século. Os pixéis esculturais de Lara são o sex symbol d’hoje, não menos real ou virtual que os grãos de nitrato da Marylin d’ontem. Tudo ilusão, tudo ficção para alimentar cérebros sequiosos de imagens e modelos. Nada mais natural, pois, que a gravação neuronal de um programa nos espíritos inquietos de hoje, cujos resultados se verão daqui a não muitos anos.
Mas se este livro é sobre Croft, Lara Croft, ele há outros conteúdos massificados que terão de ser levados em conta no universo dos jogos de computador. O Doom que é a mensagem das séries B. O Quake que é a mensagem da ficção das séries B com orçamentos de classe. O PacMan que é a mensagem de uma pizza. O Tetris que é a mensagem do Cubo de Rubick que por sua vez é a mensagem do Lego que por sua vez é a mensagem do The Glass Bead Game de Herman Hesse que por sua vez é a mensagem da música das esferas de Pitágoras que por sua vez é a mensagem do yin-yang de Lao Tsé. Uma espiral quase perfeita de imaginação e consequência. Um devir.

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Existe, porém, uma forma mais simplificada da teoria de Coupland que afirma o seguinte: "diz-me o que comes, dir-te-ei quem és", e que tem como resultado a causalidade das mensagens. Filmes violentos provocam comportamentos violentos. Jogos violentos provocam comportamentos violentos. E deixem-me ser claro sobre este ponto: embora não acredite nesta causalidade, nunca encontrei provas irrefutáveis de que assim não seja.
Não deixa de ser interessante que a virtualidade – ou melhor: o espaço ficcional – seja entendido como tendo um peso muito maior nos comportamentos que o real. A livre circulação de armas, a criminalidade, a miséria, a insegurança e as guerras, por exemplo, são percepcionadas como tendo efeitos muito menores na formação das gerações que, por exemplo, o cinema ou os jogos. E estaria tentado a acreditar que assim fosse, se o mestre não nos tivesse explicado que «o meio é a mensagem» e não os conteúdos. Nesse sentido, o cinema e os jogos mudam-nos, primeiramente, na medida dos seus efeitos sobre processos de pensamento e percepção, não da influência das suas histórias sobre a imaginação.

(…)

Do que eu me recordo, a minha infância foi pejada de jogos violentos. Parte das vezes, alguém acabou com alguma coisa partida: um nariz, um braço, um orgulho. Essa violência, porém, tinha lugar numa arena fora do alcance dos adultos. No pátio depois das aulas, na rua, nas traseiras do prédio. Raras vezes se quebrava um código de honra onde estava estipulado que, mesmo sangrando, os adultos deviam ser mantidos em total alheamente dos nossos jogos perigosos.
Acontece que os jogos de computador sublimam essa violência, porque crescer rapaz parece exigir essa arena de desafio, de perigo, de afirmação e, quiçá, de fanfarronismo (e por alguma razão os jogos não atraiem tanto o sexo feminino). Os jogos de computador tornam a violência mais asséptica e infinitamente mais segura para o bom estado da c
ana do nariz, ao mesmo tempo que fornecem os antigos rituais que fazem crescer. Mas quebraram o tal código de honra: trouxeram a violência para dentro de casa, mesmo para debaixo do olhar dos adultos. Isso é que estragou tudo. No geral, as mães sempre foram mantidas em total obscurantismo quanto à malícia e pericolosidade das suas inocentes criancinhas. Agora, descobriram-no.

(…)

Sem uma formação mcluhanista, temos de aturar gente que interpreta os efeitos dos jogos nos fait-divers dos jornais sensacionalistas, sem olhar com atenção para os filhos e perceber o que neles realmente mudou ou está a mudar. Sem entender que cada nova geração possui uma velocidade de processamento e utiliza uma percentagem do cérebro cada vez maiores. Que os milagres inventados – a ida à Lua, o microchip, etc. -- são coisa pouca quando comparados com os milagres que estão por inventar e que estão hoje registados no PacMan, no Quake e em Tomb Raider. Quem entende Lara?

[in Blitz]


 

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