"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

4.12.2003

O bocejo interactivo

O termo «multimédia» está a ser gradualmente substituído por «new media». A intenção, suponho, é a realçar certas características inerentes a estes novos media em vez de se falar de uma integração audiovisual. E de todas essas características, há uma que claramente se destaca: a interactividade.
...
Mas como palavra de ordem – ou conceito de ordem – destes tempos de novos media, a interactividade é abusada e abusiva. Digo eu.
Será que tudo, a partir de agora, tem mesmo de ser interactivo? Uma das maiores contradicções de termos (aquilo que os americanos chamam de «oxymoron» e que nós já deviamos ter encontrado uma palavra que o traduzisse) é a «televisão interactiva». Perdão? Um sofá + uma cola + pringles e/ou gelado + um ecrã = fazer o quê? Interagir? Desculpe, mas preferia ficar aqui sentado a sentir-me estúpido. É possível?
...
Nem todos queremos interactividade nas mesmas coisas e, sobretudo, nas mesmas quantidades. Há pessoas que têm cães e pessoas que têm gatos. Os primeiros dão um trabalhão e os segundos nem por isso. Eu não quero ter uma relação activa com a minha televisão. Se ela um dia falar comigo provavelmente terei um enfarte. Talvez queira jogar Playstation em rede, mas isso é outra história, não é?
Porque uma coisa é a mediação, a possibilidade de estabelecer comunicação nos dois sentidos, e outra são programas, conteúdos e narrativas interactivas. Eu quero interagir com pessoas, não com programas. Eu quero falar com pessoas, não com conteúdos. Eu quero que me contem histórias sem ter de ser eu a decidir se a Capuchinho escapa ao Lobo ou não. Nem costumizar se a Capuchinho é vermelha, verde ou azul e branca. Provavelmente nem todos partilharemos desta opinião, mas é o que penso e o que a experiência me ensinou como mais interessante.
...
Vejamos dois modelos de narrativa: linear e não-linear. Dois exemplos daquilo que funciona: quando quero uma boa ficção linear, leio um livro. De todos os media, ainda é o melhor para se colher uma boa história (porque é o mais eficaz na transmissão de autoria e estilo).
Por outro lado, as simulações são o único exemplo capaz de uma narrativa realmente aberta, não-escatológica e não-linear. Programas de vida artificial como «Creatures» ou simulações como «SimCity» limitam-se a criar um certo número de regras pelas quais funciona um universo e tudo o que aí acontece é altamente aleatório. Quanto maior o número de regras e sua complexidade, maior o efeito de imersão num caos que reflecte a realidade.
«Se a narrativa é uma técnica para extrair significância do ser, ordem da contigência, então a interactividade pode ser vista como o seu inverso, a técnica para extrair ser da significância, de gerar a simulação de contigência de princípios básicos», como defende Andy Cameron (fundador da companhia Antirom e professor de media digital no Hypermedia Research Center da Universidade de Westminster).
...
A narrativa é sempre um olhar (semioticamente falando) um ponto de vista, subjectivo, pleno de intencionalidade; manipulado pelo(s) narrador(es).
Não admira pois que Andy Cameron ( fundador da companhia Antirom e professor de media digital no Hypermedia Research Center da Universidade de Westminster) defenda que «estórias e interactividade não parecem misturar-se muito bem. Talvez seja necessário enfrentar o facto de que jogos e estórias são estruturadas fundamentalmente de modos diferentes, e que a interactividade é para os jogos, não para as estórias».
E eis que um dos mitos do actual multimedia cai por terra. Mas vamos ver como é.
...
O línguista Bernard Comrie distingue duas formas de tempo no que se refere à linguagem: o aspecto (aspect) e o partícipio (tense). O partícipio designa o tempo em que as situações relatadas acontecem: no passado, no presente ou no futuro. Fazem a distinção entre o tempo em que as situações ocorrem e o momento em que são formuladas na fala. Por sua vez, o aspecto distingue entre o perfectivo (perfective) -- uma situação vista desde «fora», como terminada -- e o imperfectivo (imperfective) -- uma situação vista desde «dentro», como ainda a decorrer.
A narrativa é, assim, uma representação análoga ao aspecto perfectivo; enquanto a representação da interactividade se aproxima ao aspecto imperfectivo.
Segundo Cameron, isto sugere que «os aspectos perfectivo e imperfectivo, e por analogia a narrativa linear e a simulação interactiva, correspondem a dois modos fundamentalmente diferentes de olhares (spectatorship)».
A simulação interactiva designa as condições para os acontecimentos, e não os acontecimentos em si. Tomemos como exemplo um simulador de Fórmula 1: a pista, a velocidade, o carro, são as condições, mas não um acontecimento. O tempo é: tempo real, agora, sem construção verbal de passado ou futuro. Não existe uma narrativa linear; o resultado -- ou o final -- está em aberto (embora, pelo menos no meu caso, saiba que o final é estampar-me violentamente:)
Mais tarde, se recordarmos o jogo, este realmente se torna narrativa, adquirindo as respectivas características que de seguida identificamos.
Ao contrário de um jogo, a narrativa é sempre a explicitação de acontecimentos que já ocorreram. Mesmo que a acção decorra no futuro cronológico ou o narrador utilize o presente como tempo verbal, há, como soi dizer-se, «princípio, meio e fim», fechados sobre si mesmo, numa construcção que deixou de fora tudo o resto «que não aconteceu».
...
O que nos leva a concluir que uma obra é mais narrativa quanto menos interactiva; que é mais história quanto menos o é jogo, e vice versa.
«Se a narrativa é uma técnica para extrair significância do ser, ordem da contigência, então a interactividade pode ser vista como o seu inverso, a técnica para extrair ser da significância, de gerar a simulação de contigência de princípios básicos.»
Eis o grande desafio que se coloca aos programadores, produtores e argumentistas. A narrativa é, essencialmente, manipulação -- e o êxito das obras narrativas, seja em livro, em filme ou outro, dependem em muito da autoria, do ponto de vista e das técnicas de narração (nem vale a pena dar exemplos). Do modo como os autores conseguem impregnar os seus leitores e espectadores do seu universo ficcional (ok, vou dar exemplos: Tolkien, Star Wars, Moebius).
Mas não é de desesperar, digo eu. A interactividade passa mais por entregar o protagonismo das histórias ao seus leitores, do que lhes conferir um diploma de autores-eles-mesmo. Afinal, sempre foi assim; trata-se agora de explorar ao máximo as novas técnicas -- simulação, imersão, etc. -- para expandir a influência psicosomática das estórias e jogos, em suma: transformar o leitor numa extensão do ficção. Ou como disse, mais sinteticamente, Andy Cameron: «Em vez de pessoas sem histórias, a interactividade oferece a promessa de pessoas dentro das histórias; e em vez do fim da narrativa, uma explosão de experiências narrativas pessoais dentro da máquina».
...
Entre estes dois modelos quase radicais só existe... a ilusão. Os videojogos de aventura e RPG, que são hoje os programas mais desenvolvidos em termos de narrativa interactiva, funcionam através de níveis. Independentemente das escolhas que os jogadores realizaram durante o primeiro nível – o que lhes deu uma certa sensação de liberdade e de efectivamente conduzirem o rumo dos acontecimentos – eles são levados a um ponto comum: a passagem para o segundo nível. Que é igual para todos. E o mesmo no terceiro nível, quarto, etc. Quanto muito, o último nível dará acesso a dois ou três finais diferentes. Não está em causa a capacidade deste sistema produzir entretenimento e prazer. Mas este é, a meu ver, um tipo de narrativa e interactividade que não me satisfaz minimamente. Eu preciso da interactividade, isso sim, para jogar Quake em rede.
Aliás, é isso mesmo que vou fazer agora porque, de repente, me sinto interactivo.

[in Blitz]

 

Photobucket - Video and Image Hosting My events (curator/producer):

>Projecto Ibérica (Lisbon + Madrid 1988, new video creation from the Iberian Peninsula show and conferences)

>Convention Zero (Lisbon, 1996, science-fiction and new media convention, w/ Derrick de Kerckhove, Olu Oguibe, Leo Ferreira and Industrial Light & Magic)

>Art+Technology=Multimedia (Lisbon, 1997, multimedia workshop, w/ Andrea Steinfl and RealWorld)

>Robotica Tribal, by Chico MacMurtrie and Amorphic Robot Works, S. Francisco (Lisbon, 1997, show and exhibition)

>Convention 1.0 (Lisbon, 1998, new media convention and Internet workshop for youths, w/ John Perry Barlow and Derrick de Kerckhove)

>Festival do Fim (Lisbon, 1999, new media and music festival, w/ José Bragança de Miranda, Coldcut, Ninja Tune et al)

>Oeiras Image Festival 02 - "Under Surveillance/Sob Vigilância" (Oeiras, 2002, new media festival, w/ Manuel De Landa, Geert Lovink, David Wood, José Bragança de Miranda et al)

>Oeiras Image Festival 04 - "Síntese/Syntesis" (Oeiras, 2004, new media festival, w/ Marcos Novak, Catherine Malabou, Olu Oguibe, José Bragança de Miranda et al)