"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

12.06.2003

Os jogadores (II)

Ele há coisas em que é realmente difícil acreditar. Coincidências demasiado convenientes, diria. Mas aquilo que de seguida vou contar passou-se exactamente assim...
Na manhã de 24 de Dezembro o Henrique veio acordar-me, algo perturbado. Tinha três enormes bolhas nos polegares de ambas as mãos. O que é isto? inquiria, entre a aflição e o espanto. Ainda ensonado, a verdade levou alguns largos segundos a atingir-me: aquelas bolhas mais não eram que o efeito do joypad da Playstation. No dia anterior, em desesperada afirmação anti-natalícia, haviamos alugado o Tekken 3. Nada como um jogo de pancada para dissolver o melaço da ocasião. E o resultado estava à vista: três enormes bolhas que celebravam, na manhã de 24 de Dezembro, um momento mágico, um rito de passagem, um ritual iniciático ainda por entender. Juntos, rimo-nos, emocionados.

(...)

Também eu em tempos tive bolhas que se transformaram em calos quase permanentes. Mas noutro local: no limite da palma da mão, junto aos dedos. O jogo que as provocou é absolutamente analógico: uma coisa chamada matraquilhos, em que tirei licenciatura e doutoramente no Bairro Alto enquanto cursava a Escola de Cinema. Mas agora os gestos mudaram radicalmente. Talvez alguém devesse reescrever O Polegar do Panda.
Existem uma série de pequenas diferenças -- para além das bolhas -- entre mim e o meu filho que a simples intuição permite descobrir. A primeira vez que vi o anúncio televisivo da GameBoy Camera achei a ideia fascinante. Um passo mais na entrega dos mecanismos de representação ao colectivo, após a disseminação das camcorders. Há umas semana
s atrás, em Amsterdão (exactamente no ambiente contagiante do Doors of Perception onde se falou imenso de jogos) comprei a câmara e a impressora, até porque um GameBoy Color já estava prometido como prenda de Natal (nada como equipar as crianças para sobreviverem em culturas aceleradas). Ao telefone contei-lhe a novidade. O Henrique, porém, não pareceu demasiado entusiasmado. Isto porque, segundo ele, a Camera era para ser usada no GameBoy Pocket e não na versão normal que ele tinha. "Póquete? Qual póquete?" pergunto eu. "A que aparece no anúncio", responde-me.
Pois eu no anúncio, nesse como em muitos outros, não vejo nada. Ou melhor, vejo marcas, apreendo mensagens. As quais rotulo de mnemónicas de sociedade de consumo e as trato como tal. O que eu vejo é um GameBoy, uma espécie de entidade registada. Não vislumbro pormenores. Mas a geração do Henrique é bem diferente na leitura da publicidade. Para eles, publicidade é informação útil.
Não se trata, porém, de qualquer fenómeno mecanicista. Em verdade, conheço poucas pessoas que, como eu, consigam ver 25 avos de segundo. As muitas horas passadas diante de uma mesa de montagem vídeo permitiram-me treinar a retina para ver um frame. Ou melhor, as linhas pares ou as linhas ímpares de um único frame. Onde os outros nada viam, eu descobria pequenos defeitos de montagem. Não se trata, pois, de uma questão de simples velocidade. É uma questão de percepção pura: os nativos aprendem com a publicidade a lidarem com os produtos da sua preferência.

(...)

Jogar com o Henrique é também uma experiência estimulante no que diz respeito à(s) diferença(s) de percepção. O N2O, por exemplo. Para os que não conhecem o jogo deixem-me resumir: um túnel alucinogéneo povoado por insectos (o intestino grosso de Timothy Leary logo após a ingestão de Naked Lunch de William Burroughs, estão a ver o estilo) em cujo interior viajamos a alta velocidade, comandando uma nave que abre caminho aos tiros. Eu cá até consigo safar-me, pelo menos até ao sétimo nível. Mas utilizo uma táctica de absoluta brutalidade: vou disparando sobre tudo o que me aparece pela frente. O Henrique, contudo, consegue mudar de arma, conforme as conveniências. Com uma suavidade impressionante, ao contrário das minhas possibilidades, Eu, para mudar de arma, tenho que "sair" do jogo por alguns momentos. Sou obrigado a pensar, penosa e conscientemente, nos gestos necessários para efectuar essa acção. Invariavelmente, e pela velocidade estonteante a que o jogo se processa, "morro" tentando-o.
Pelo que anteriormente expliquei, acredito ver os pixéis melhor que o meu filho e os jogadores de arcada e consola. Contudo, o facto de ver melhor os pixéis não me permite reagir ao significado deles tão eficientemente quanto estes. Quando a cultura realmente acelera, falta-me processamento em paralelo. Falta-me a capacidade de entender a forma como cada pixel está condicionado pela existência dos outros e que significado isso encerra. Falta-me imersão e universo áudio-táctil.
Falta-me, enfim, o polegar vivo, autónomo e inteligente.

[in Blitz]


 

Photobucket - Video and Image Hosting My events (curator/producer):

>Projecto Ibérica (Lisbon + Madrid 1988, new video creation from the Iberian Peninsula show and conferences)

>Convention Zero (Lisbon, 1996, science-fiction and new media convention, w/ Derrick de Kerckhove, Olu Oguibe, Leo Ferreira and Industrial Light & Magic)

>Art+Technology=Multimedia (Lisbon, 1997, multimedia workshop, w/ Andrea Steinfl and RealWorld)

>Robotica Tribal, by Chico MacMurtrie and Amorphic Robot Works, S. Francisco (Lisbon, 1997, show and exhibition)

>Convention 1.0 (Lisbon, 1998, new media convention and Internet workshop for youths, w/ John Perry Barlow and Derrick de Kerckhove)

>Festival do Fim (Lisbon, 1999, new media and music festival, w/ José Bragança de Miranda, Coldcut, Ninja Tune et al)

>Oeiras Image Festival 02 - "Under Surveillance/Sob Vigilância" (Oeiras, 2002, new media festival, w/ Manuel De Landa, Geert Lovink, David Wood, José Bragança de Miranda et al)

>Oeiras Image Festival 04 - "Síntese/Syntesis" (Oeiras, 2004, new media festival, w/ Marcos Novak, Catherine Malabou, Olu Oguibe, José Bragança de Miranda et al)