"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

12.09.2003

Os Mutantes

É corrente dizermos que a tecnologia não é boa nem má. É o modo como nos usamos dela que a faz ser – ou parecer – boa ou má. Como dizia Borges: “o homem fala com os anjos, o homem fala com os demónios, e atraem-no mais uns que outros, segundo o seu temperamento”. Uma serra eléctrica é boa quando corta árvores e má quando utilizada num filme de terror série B. Mesmo quando corta uma árvore, se essa árvore for da selva amazónica, provavelmente podemos dizer que é um mau uso da tecnologia. Eu mesmo terei dito, de forma coloquial, algo deste género nas últimas semanas. Mas não creio que esta assunção esteja correcta. Talvez seja mais correcto dizer que é a utilização que a tecnologia faz de nós que a torna o que é, para além de todo o bem e o mal, já que se trata de um organismo sem auto-consciência.
Lembro-me de há uns anos atrás ter conversado sobre este tema com Sandy Stone e ela ter dito que era: “extremamente desconfiada em relação ao modo como a tecnologia se está a desenvolver. Não nos vejo a dirigir a tecnologia de forma a melhorar as nossas vidas - muito embora seja isso que aparentemente acontece -, mas o que pressinto é que a tecnologia nos está a transformar de modo a melhorar a sua vida. E eu não estou segura de que o que a tecnologia quer é bom para nós, ou, até, se quer o mesmo que nós.” Fim de citação.
Realmente a tecnologia parece desenvolver-se de forma orgânica, tendo nós um muito limitado controlo sobre esse crescimento. Mestre McLuhan, na sua seminal entrevista à Playboy em 1969, disse que “o homem se tornou o orgão sexual do mundo maquínico tal como a abelha o é do mundo das plantas, permitindo-lhe reproduzir-se e evoluir constantemente para novas e melhoradas formas”.
Há certamente imensos factores de ordem política e económica que contribuiem para o desenvolvimento da tecnologia – dizem-nos, por exemplo, que precisamos de UMTS para comunicar melhor entre nós, mas ninguém conseguiu ainda provar que as famílias serão melhores se conseguirem enviar um vídeo da primeira mudança de fralda do bébé – mas suponho que são exactamente esses factores, os políticos e os económicos, que mais facilmente escapam ao nosso controlo. Ainda há pouco tempo José Bragança de Miranda falava da “tendência moderna de resolver problemas políticos de modo técnico”. Como se fosse possível transferir para o maquinal a responsabilidade do problema. Mas o mais assustador é que na pequena esfera dos nossos dias também fazemos o mesmo: os vídeojogos e a TV, por exemplo, libertam-nos da atenção constante que nos merecem os nossos filhos.
Não estou a falar de uma máquina diabolizada e auto-consciente, que mais tarde ou mais cedo se vai virar contra a humanidade como no Exterminador Implacável ou no Matrix. Quem disse que um organismo necessita de auto-consciência para ser eficaz? Que se saiba, nós os humanos somos os únicos seres auto-conscientes e notem a quantidade de asneiras que fizémos com o planeta. Olhemos para as formigas ou para as abelhas. Funcionam como um organismo e funcionam na perfeição. Mas claro que as formigas de hoje e as abelhas de hoje não serão muito diferentes das formigas e abelhas de há mil anos atrás. Ao contrário, a tecnologia evoluiu tremendamente. A tecnologia como organismo consegue evoluir porque desenvolveu uma relação simbiótica com o homem. É uma espécie de parasita dos nossos desejos e da – até prova do contrário -- estúpida vontade de progresso, que originou a nossa expulsão do Paraíso Original.
Nesta relação simbiótica com a máquina e com a tecnologia, há os optimistas – trabalham quase todos em agências de publicidade e em operadoras de telecomunicações – os pessimistas moderados e os muito pessimistas. Gostava de falar um pouco sobre esta visão pessimista e redimir-me da última década de estúpida euforia sobre o advento de um novo mundo por via da tecnologia. Todos nós temos direito ao erro se soubermos redimir-nos a tempo, se reconhecermos o arrependimento.
Por isso, nada melhor que que citar um pensador católico: Marshal McLuhan. Quando o mestre disse que “o meio é a mensagem” e uns anos mais tarde que “o meio é a massagem” – são frases que de tão cliché por vezes esquecemo-nos o que elas realmente significam – o que ele estava a pôr em evidência é que existe um mecanismo de retroacção entre homem e máquina. Numa relação simbiótica, o que acontece a um, tem efeitos no outro.
Dizia ele, por exemplo, que “o efeito do tubo de televisão sobre a pessoa humana é a desmobilização dos músculos do olho. É por tal razão que a criança da televisão não é capaz de ler. Ela perdeu o uso e o treino dos músculos necessários pelo excesso de televisão”. Por sua vez, digo eu, as cores da televisão tornaram-se mais fortes e a resolução da imagem mais definida, de forma a impedir o olho de se desviar. Não sei se ele estava certo ou se isto pode ser provado, mas se assim fôr, certamente que a atrofia dos músculos do olho foi imediatamente compensada por outra função. Nomeadamente a nível do cérebro, que é onde quase todo o mecanismo da visão verdadeiramente se processa. O olho pouco mais é que uma superfície plana -- como um ecrã, note-se – onde se reflecte a luz. Os verdadeiros processos cognitivos – como a transformação dessa imagem bidimensional na percepção de um mundo tridimensional – acontecem no cérebro. E o que está a acontecer ao cérebro humano nos últimos cinquenta anos, por via da tecnologia que se desenvolve a um ritmo desconhecido no mundo dito natural, é uma mutação.

(...)

Tymothy Leary, na sua seminal descrição de como se tornou anfíbio, disse-nos que o cérebro se viciou em quantas tal como o corpo se vicia em cafeína ou nicotina. Douglas Rushkoff lembrou-nos que "sem termos migrado uma só polegada, viajámos mais longe que qualquer outra geração na História", argumentado que por via disso "o grau de mudança experimentado pelas últimas três gerações rivaliza com o de uma espécie sofrendo uma mutação”.
E o meu argumento é que, durante 150 mil anos o homem evoluiu de acordo com a pressão que o “mundo natural” sobre ele exerceu. De há cem anos atrás, porém, o ambiente natural foi substituído pelo ambiente técnico e tecnológico. Ao contrários dos organismos baseados em carbono, a tecnologia, e sobretudo a tecnologia da informação baseada em quantas, evolui a uma velocidade estonteante e jamais vista na história do homem. Como seres simbióticos, estamos a evoluir com ela.
A um ritmo tal, que estamos a assistir ao nascimento de uma geração que, se comparada com as anteriores, só pode ser classificada como: mutante.

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