A fábula dos quanta
Há cem mil anos, tire-se ou acrescente-se uns dias, ali estávamos nós em volta do fogo, pós-homídeos cambaleantes na sua postura recém erecta, gesticulando e balbuciando a caminho de nos tornarmos deuses. Ao longo de quatro milhões de anos procuráramos o milagre: aquele que nos permitisse mapear o conhecimento que adquirimos durante uma vida e passá-lo aos vindouros, de forma a não começar tudo de novo uma e outra vez, encurralando-nos num beco de ignorância e perplexa estupidez. A linguagem permitiu que a tribo começasse então a contar histórias e a partilhar ideias com cada nova geração; e a cada dessas gerações fomos melhorando, evoluindo, nesse sentido último que nos tornaria – para o mal e para o bem -- senhores da Terra.
Há cem anos atrás as histórias não haviam mudado muito. Continuávamos sentados à volta do fogo: um fogão, uma lareira. A linguagem, embora mais elaborada, era a mesma de sempre: fala, gesto e tacto. E se o tacto não tem medida e serve bem ao amor, tudo o resto ocupava uma largura de banda demasiado estreita para um aparelho cognitivo com o poder de processamento quase inesgotável como o é o cérebro.
No momento em que se escrevem estas palavras, tudo mudou radicalmente. O fogo foi substituído (ou acrescentado) por um rádio, um telefone, um televisor, uma consola de vídeojogos, um computador. Tal como os antepassados dominaram o fogo, tornámos portáteis as fontes de informação: um telemóvel, um gameboi, um PDA. Fendas enormes no real que permitem input e output de quasi infinitos quanta. Informação e mais informação. Um autêntico tsunami de bits e pixéis.
Timothy Leary dizia de que o cérebro se viciou em quantas, tal como o corpo se vicia em cafeína ou nicotina. Impactado por uma quantidade até agora desconhecida de informação (não numa feira de atracções qualquer ou em experiências laboratorias, mas na pacata intimidade das nossas própias casas) o cérebro exige cada vez mais e mais. E, ao que parece, não tem problemas em digeri-lo.
Claro que nem todos lidamos da mesma forma com este dilúvio de quanta. Pela primeira vez na História da humanidade é possível destrinçar diferenças abismais de comportamento e cognição entre uma geração e a seguinte (o pós-homídeo talvez fosse mais parecido com o homem do século XIX que nós o somos com este). Salvo raras excepções – Copérnico (que no séc. XVI desviou a Terra do centro do universo) ou Giotto (que criou a tridimensionalidade virtual) – nunca antes se viu tamanho desajustamento do homem com o que acontece à sua volta; o chegar-se a adulto e o mundo estar pleno de coisas incompreensíveis ou impossíveis de manipular.
"O ecrã é a porta de vidro giratória através da qual o meu cérebro recebe e emite os seus sinais", escrevia ainda Leary na sua seminal descrição de como se tornou anfíbio. O cérebro passou a consumir biliões de bytes e sentiu-se feliz. Dificilmente, porém, poderiamos falar de mutantes se esse cérebro se mantivesse sentado numa redoma de pipocas e cerveja no sofá. O primeiro ecrã foi, apenas, uma janela. "Uma janela para o mundo" (tal como foi definida a televisão) é certo, mas apenas isso: uma visão impotente da paisagem para lá do corpo e do espírito. O ecrã que veio mudar isto tudo e que se tornou o motor irremediavél da mutação é o ecrã do computador pessoal. Já não é uma janela, mas sim uma porta giratória. Traz e leva de volta.
"Tal como os sonhos e os animais, o computador situa-se na linha de fronteira. É uma mente, mas não é bem uma mente. É inanimado, porém interactivo. Não pensa, mas não é alheio ao pensamento. É um objecto, em última análise um mecanismo, mas age, interage, e, num certo sentido, parece detentor de conhecimentos. Confronta-nos com uma desconfortável sensação de afinidade. Afinal de contas, também nós agimos, interagimos e parecemos deter conhecimentos, e todavia, em última análise, somos feitos de matéria e ADN programado", descreveu Kevin Kelly.
O efeito dos computadores na cultura levou-nos a olhar os seres humanos como "cyborgs, misturas transgressivas de biologia, tecnologia e código de computador"; em suma, como máquinas que correm DNA. Um DNA reescrito todos os dias pelos quanta.
Há cem anos atrás as histórias não haviam mudado muito. Continuávamos sentados à volta do fogo: um fogão, uma lareira. A linguagem, embora mais elaborada, era a mesma de sempre: fala, gesto e tacto. E se o tacto não tem medida e serve bem ao amor, tudo o resto ocupava uma largura de banda demasiado estreita para um aparelho cognitivo com o poder de processamento quase inesgotável como o é o cérebro.
No momento em que se escrevem estas palavras, tudo mudou radicalmente. O fogo foi substituído (ou acrescentado) por um rádio, um telefone, um televisor, uma consola de vídeojogos, um computador. Tal como os antepassados dominaram o fogo, tornámos portáteis as fontes de informação: um telemóvel, um gameboi, um PDA. Fendas enormes no real que permitem input e output de quasi infinitos quanta. Informação e mais informação. Um autêntico tsunami de bits e pixéis.
Timothy Leary dizia de que o cérebro se viciou em quantas, tal como o corpo se vicia em cafeína ou nicotina. Impactado por uma quantidade até agora desconhecida de informação (não numa feira de atracções qualquer ou em experiências laboratorias, mas na pacata intimidade das nossas própias casas) o cérebro exige cada vez mais e mais. E, ao que parece, não tem problemas em digeri-lo.
Claro que nem todos lidamos da mesma forma com este dilúvio de quanta. Pela primeira vez na História da humanidade é possível destrinçar diferenças abismais de comportamento e cognição entre uma geração e a seguinte (o pós-homídeo talvez fosse mais parecido com o homem do século XIX que nós o somos com este). Salvo raras excepções – Copérnico (que no séc. XVI desviou a Terra do centro do universo) ou Giotto (que criou a tridimensionalidade virtual) – nunca antes se viu tamanho desajustamento do homem com o que acontece à sua volta; o chegar-se a adulto e o mundo estar pleno de coisas incompreensíveis ou impossíveis de manipular.
"O ecrã é a porta de vidro giratória através da qual o meu cérebro recebe e emite os seus sinais", escrevia ainda Leary na sua seminal descrição de como se tornou anfíbio. O cérebro passou a consumir biliões de bytes e sentiu-se feliz. Dificilmente, porém, poderiamos falar de mutantes se esse cérebro se mantivesse sentado numa redoma de pipocas e cerveja no sofá. O primeiro ecrã foi, apenas, uma janela. "Uma janela para o mundo" (tal como foi definida a televisão) é certo, mas apenas isso: uma visão impotente da paisagem para lá do corpo e do espírito. O ecrã que veio mudar isto tudo e que se tornou o motor irremediavél da mutação é o ecrã do computador pessoal. Já não é uma janela, mas sim uma porta giratória. Traz e leva de volta.
"Tal como os sonhos e os animais, o computador situa-se na linha de fronteira. É uma mente, mas não é bem uma mente. É inanimado, porém interactivo. Não pensa, mas não é alheio ao pensamento. É um objecto, em última análise um mecanismo, mas age, interage, e, num certo sentido, parece detentor de conhecimentos. Confronta-nos com uma desconfortável sensação de afinidade. Afinal de contas, também nós agimos, interagimos e parecemos deter conhecimentos, e todavia, em última análise, somos feitos de matéria e ADN programado", descreveu Kevin Kelly.
O efeito dos computadores na cultura levou-nos a olhar os seres humanos como "cyborgs, misturas transgressivas de biologia, tecnologia e código de computador"; em suma, como máquinas que correm DNA. Um DNA reescrito todos os dias pelos quanta.
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