"The important thing is to realize that electric information systems are like environments in the full organic sense." Marshall McLuhan

4.25.2006

Diário de um psicopata

«A identidade duma pessoa no computador é a soma da sua presença distribuída”(1) -- disse-me a doutora ao telefone. Liguei-lhe para marcarmos a consulta da tarde, já que os meus pais estão cada vez mais chatos e não me permitem faltar outra vez. Mal eles sabem que eu gosto. Das consultas e da doutora. Mas por vezes tenho coisas mais importantes para fazer, não é? Como hoje de manhã, que tinha prometido passar com Kai e Tanya. Ele é um às a levantar as pessoas acima da sua cabeça e então partir-lhes a espinha com o joelho espetado nas costas; ela é super sexy quando me salta para os ombros, coloca-me o pescoço entre as suas ancas, e torce-me as vértebras. A arena encheu-se de sangue pixelado com os seus movimentos graciosos e acho que estou a ficar apaixonado. Mas isso está sempre a acontecer-me. O Quan Chi também esteve impagável, com aquele seu truque de arrancar-me a perna e bater-me com ela até exaurir. É um verdadeiro pândego. Foi um delírio, mais para mais com o novo poço terminado em lâminas aguçadas. O som dos ossos a quebrarem-se lá em baixo é música para os ouvidos. Deve ser por isso que chamam a isto kombate mortal.
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Make friends, make friends,
Never, never break friends.

Make up, make up, never row again
If we do we’ll get the cane (2)
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Mas voltando à doutora.”A profusão de manifestações de multiciplicidade na nossa cultura, incluindo a adopção de personalidades on-line, está a contribuir para uma revisão generalizada das noções unitárias, tradicionais, de identidade”, continuou ela.”Mas o que é a identidade?” perguntei-lhe eu.
«A identidade refere-se a uma semelhança rigorosa entre duas qualidades, neste caso entre uma pessoa e a sua máscara”. Isso quer dizer que o número de identidades que podemos ter depende apenas do número de máscaras criadas. E esse número é, teoricamente, infinito. Além do mais, elas -- as identidades -- não são nem estáticas, nem estanques. Uma das qualidades mais fascinantes e, simultaneamente, algo assustadora da identidade no ciberespaço é o seu dinamismo. Por paradoxal que pareça, é difícil mantermo-nos a passo com as nossas próprias transformações. Mas talvez seja por isso mesmo que me sinto bem nos talkers e no IRC. Há algumas pessoas que ficam chateadas quando descobrem que fisicamente eu não sou nada parecido com a personagem que lhes dei a conhecer. Às vezes nem sou do mesmo sexo, eh!eh! Mas não estou a ver mal nenhum nisso e a doutora até está a dar-me razão, muito embora diga que realmente necessito das consultas. Preciso sim, mas é para a poder ver. Só não entendi o que quis dizer, exactamente, com”Uma amálgama de personalidades na qual o teste de competência não é tanto a integridade do conjunto, mas sim o facto de a representação aparentemente correcta surgir no momento e no contexto certos, sem prejuízo do “colectivo” interno restante”. Mas logo à tarde ela irá explicar-me.
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What’s your name?
Mary Jane.
Where do you live?
Down the lane.
What do you keep?
A little shop.
What do you sell?
Ginger pop.
How many bottles do you sell a day?
Twenty-four, now go away.
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Hoje, mesmo antes de tomar o pequeno almoço, diverti-me a atropelar alguns incautos. É sempre bom sentir os ossos quebrarem-se contra a chapa, ao som dos motores. Abre o apetite e descansa a vista. O pequeno almoço em
si é que não é lá grande coisa. Não há micromachine que compense um bom
carmagedão. São completamente eufemísticos, mesmo quando os lanço
mesa abaixo. Faltam os gritos e as explosões. Peguei numa revista enquanto a trituradora desfazia a fruta para o batido. Vinha lá uma entrevista com um tipo que eu adoro, o William Gibson, que escreveu o”Idoru”. Também dessa vez me apaixonei. Um dia talvez possa passar o meu corpo e a minha mente para dentro de um chip. Altamente portátel, distribuído e imortal, que mais poderemos ambicionar? A certa altura da entrevista, o Gibson fala de jogos:”Os jogos-vídeo não eram coisa em que eu tivesse praticado muito na minha juventude, e eu ter-me-ia sentido embaraçado se entrasse efectivamente numa dessas casas de jogos, dado que todos os clientes eram muito mais novos que eu, mas quando espreitei para dentro de uma delas, pude dar-me conta, ao ver a intensidade física das suas posturas, de quão extasiados aqueles miúdos estavam. Era como um daqueles sistemas fechados que aparecem nos romances de Pynchon: havia um circuito de retroacção, com fotões a saírem dos ecrãs em direcção aos olhos dos miúdos, os neurónios a moverem-se através dos corpos destes, e electrões a moverem-se através do computador. E aqueles miúdos manifestamente acreditavam no espaço projectado pelos jogos.
Todas as pessoas que trabalham com computadores parecem desenvolver uma fé intuitiva na existência dum qualquer tipo de espaço concreto atrás do ecrã.” (3)
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Skinny-malinky long legs
Big banana feet,
Went to the pictures
And fell through seat.
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O que o Gibson não percebeu é que o ecrã é mais que um espaço atrás do vidro do monitor. A doutora costuma dizer que”Na cultura da simulação, a partir do momento em que uma coisa funciona, tem toda a realidade de que necessita”. O ecrã é um espaço que nos envolve, como a água de um oceano em que nos afogamos ou o ar que respiramos. Quem está por detrás do vidro somos nós. Do lado de cá só existe um olhar cinematográfico, um ponto de vista divino, vazio e sem consciência. Um robô através do qual contactamos com o rato, o joystick ou o teclado.
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Criss cross the Holy Bible,
Never tell a lie,
If I do I’ll cut my throat, and
then I’m sure to die.
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Enquanto ingeria o batido lembrei-me de consultar as notas da minha última consulta com a doutora. Ela não deve saber mas, uma vez fora da sala, anoto logo em pequenas folhas post-it algumas das frases que ela me vai deixando em conversa. Talvez um dia publique um livro sobre as nossas vidas e de como eu finalmente a libertarei. Segunda-feira: “Na ausência de um princípio de coerência, o eu dispersa-se em todas as direcções”. Não sei se estamos completamente de acordo nisto, mas eu acho que são os ecrãs que nos fazem isto. Os ecrãs multiplicam-nos, fragmentam-nos. É por essa razão que detesto a televisão, a pintura ou o cinema. Levam-me a direcções das quais não possuo qualquer controlo. Com a consola ou o pc nada disso acontece: sou eu quem está no comando e o único princípio de coerência necessário é o poder que exerço sobre as minhas ”máscaras” -- como ela lhes chama. Detesto ser uma... er... identidade passiva. A vida é mais parecida com o half-life -- abrir caminho à porrada, com um simples pé-de-cabra na mão se fôr preciso (ou se ainda não se tiver encontrado nada mais letal :) -- do que com um viewmaster que nos passa a impotência em retrospectiva. É nisso que acredito. Estou sempre a discutir com ela sobre este ponto: eu não sou violento. Os outros é que não sabem comportar-se à minha altura no ecrã. Que culpa tenho eu de ser melhor jogador que eles?
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Com a barriga cheia, dediquei-me a vingar Bane, destruindo os senhores de
Etheria. O que é maravilhoso em Etheria é a facilidade com que se pratica a traição, coisa bastamente aprendida nas séries televisivas de Caligula. São mesmo uns ingénuos estes senhores da guerra, warlords de trazer por casa. É pena não jorrarem sangue, mas nem tudo é perfeito. Nada como os pixéis estilizados do tekken para nos dar a imagem rigorosa da energia que flui dos nossos movimentos até à consequência. Sem aquela peganhenta calidez dos fluidos reais ou da cor flácida e escura da realidade. Mas quem é que precisa de – mais – realidade? Tal qual as forças de Son Goku e Son Golan e todos os outros, explosão de cores que dariam muito mais alegria ao simples acto de beijar, de ofender, de fazer aos outros o que não desejamos que nos façam a nós.
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I known a little girl sly and deceitful,
Every little tittle-tat she goes and tells the people.
Long nose, ugly face, she ought to be put in a glass case.
If you want to know her name her name is Heather Lee.
Please Heather Lee, keep away from me;
I don’t want to speak to you, nor you speak to me.
Once we were friends, now we disagree,
Oh Heather Lee, keep away from me.
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“Os MUDs são exemplos dramáticos de como a comunicação mediada pelo computador pode servir de campo para a construção e reconstrução da identidade”. Ainda que seja obrigado a dar-lhe razão, não percebo porque fala a doutora em: exemplos dramáticos. Dramático é ter de responder perante os meus pais como se isso tivesse qualquer importância e declinar as chachadas da escola só para manter o bom ritmo de chegada dos jogos e dos CDs a troco de notas positivas. Já há muito cheguei à conclusão de que os puzzles do grim fandango ou do sanitarium constituiem desafios intelectuais demasiado exigentes quando comparados com os que os professores me colocam. Isto de me”reconstruir” -- como diz a doutora – em completo imbecil sem vontade de modo a passar por bom aluno tem o seu preço. Eu sei que não devia ter pegado fogo ao carro do professor de matemática, mas um gajo que nem sequer entende a numerologia do riven não merece outra coisa, pois não? Se eu resolvo os problemas imbecis que ele me coloca – que não revelam nenhuma nova sala na minha vida nem servem para vislumbrar o fim do jogo da vida -- bem que me podia ajudar nos puzzles que realmente servem para alguma coisa. Afinal pagam-lhe para quê? Álgebra! Pois bem. Vê lá se sabes usar um extintor. Clica nele com o botão direito do rato e coloca-o por cima do teu lindo carro-leasing, eh!eh!
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Red hair, carrot nose,
Pull the string and up he goes
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Antes de me vestir para a consulta – gosto sempre de estar bem para a doutora! – selei cuidadosamente o unabomber para a redacção do jornal. Correio azul para um final vermelho. Quando contar à doutora ela vai pregar-me novo sermão. Como ela detesta que eu extermine imbecis. Falta-lhe segurança nas suas convicções, é o que é. Não fossem os críticos acépticos e outros defensores de pretensa moral, o mundo saberia que os ecrãs fortalecem o carácter. O teste da competência corresponde ao sabermos ser morais para além de todas as regras particulares, deste ou daquele jogo. Tivessem um pingo de dignidade e perceberiam que não são os ecrãs quem corrompe -- é o olhar quem corrompe.
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«As tecnologias da informação levaram-nos a colonizar o cérebro uns dos outros”, disse-me ela. E continuou:”Vivemos nos cérebros uns dos outros, como vozes, imagens, palavras em ecrãs. Somos personalidades múltiplas e incluímo-nos uns aos outros”(4). São estas as frases que registo em post-its amarelos após as várias sessões de -- chama-lhe ela --”terapia”. Obviamente que não falámos de”ouvir vozes”; eu não oiço vozes dentro da minha cabeça apesar das múltiplas personalidades. Eu habito os ecrãs e os ecrãs co-habitam em mim. Há imagens que me chegam, tais quais as do Sanitarium: ecrãs perdidos na profundeza da minha memória electrizada. E as imagens do Sanitarium, logo vistas fazem parte da minha obsessão. São coisas que eu conheço mas não sei donde ou quando ou porquê. Muitas vezes sinto que, realidade ou ficção, são ideias e emoções que herdei por contágio ou me foram transmitidas por DNA. Ou talvez esteja a ser manipulado pelos ecrãs, de modo a viver uma vida que não é exactamente minha mas que um destino mórbido – uma espécie de”The Truman Show” à escala global – me impõe.
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Mas isto de colonizar (a mente de) os outros torna-me também responsável pelo seu destino. Não que exista realmente um fenómeno telepático que nos junte como abelhas ou formigas, mas há, algures, uma troca de emoções e imagens através das quais nos tornamos irmãos de sangue.
As imagens existem para além dos corpos e das mentes. São como anjos habitando o ciberespaço. Eu vejo-as e elas vêem-se em mim.
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Como é que eu sei que o amor é perigoso? O homem do talho – o Mickey – chega a casa da Mallory (a Juliette Lewis não é o máximo?) com um pedaço de vaca ao ombro. Como eu percebo o Mickey... que linda história de amor, vivida contra todas as convenções! E naquele momento, em que o amado chega a casa da amada pela primeira vez, e o amor à primeira vista acontece, o ponto de vista bascula, distorce-se, torna-se ficção por demasiada realidade. A realidade não tem ponto de vista nem perspectiva. Não tem estética. É por isso que a realidade não presta para uma boa história de amor, e recorremos ao cinema, à televisão, enfim, aos ecrãs. Em 1994 havia uma mensagem da Hotwired que dizia assim:
REMEMBER, TODAY IS LIKE 1948, AND THEY'VE JUST INTRODUCED A NEW MEDIUM. HELP DEFINE THE FUTURE OF THAT MEDIUM BEFORE IT ENDS UP LIKE TELEVISION.
Se calhar não perceberam bem... não somos nós que definimos o medium, o medium é que nos define a nós. Pelo modo como encena o nosso amor, para começar. E de onde vêm estas histórias de amor? De onde vem a minha história de amor com a doutora? Do passado? Do presente? Se, como ela diz, essa história não existe, como é que eu a vejo, passando-me com a nitidez de um filme visto ontem? Tenho de perguntar-lhe.
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E falando de estética, recebi um mail do Frank, que esteve comigo em Amsterdão. O tema da conferência era ”Play” -- essa palavra inglesa que junta a brincadeira com os jogos – e Bruce Mau, um designer canadiano, apresentou o seu”Manifesto for Growth” que eu tenho de imprimir para levar à doutora. Ela irá certamente gostar...

01 allow events to change you
02 forget about good
03 process is more important than outcome
04 love your experiments like ugly children
05 go deep;
06 capture accidents
07 study
08 drift
09 begin anywhere
10 everyone is a leader
11 harvest ideas, edit applications
12 keep moving
13 slow down
14 don't be cool (cool is conservative fear, dressed in black)
15 ask stupid questions
16 collaborate
17
18 allow space for ideas you haven't had yet
19 stay up late
20 work the metaphor
21 time is genetic
22 repeat yourself
23 make your own tools
24 stand on someone's shoulders
25 avoid software (everyone has it)
26 don't clean your desk
27 don't enter awards (its bad for you)
28 creativity is not device dependent
29 organisation is liberty
30 don't borrow money
31 listen carefully
32 take field trips
33 imitate
34 make mistakes faster
35 scat (break it, stretch it, crack it, fold it)
36 explore the other edge
37 coffee breaks, cab rides, ream (?) rooms
38 avoid fields, jump fences
39 laugh
40 remember
41 power to the people (5)
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Estamos sempre a falar de computadores.”O efeito dos computadores na cultura levou-nos a olhar os seres humanos como “cyborgs, misturas transgressivas de biologia, tecnologia e código de computador”.”Em suma”, concluí eu,”como máquinas que correm ADN?”.
O criador da Public Key Encription, Whitfield Diffie, escreveu um dia que”a sociedade pode exercer uma muito maior influência sobre os cidadãos governando a tecnologia que lhes é acessível, do que fazendo leis sobre o que podem fazer e punindo-os se não obedecerem”. Quem controla a tecnologia? Quem controla a biologia? Quem controla os códigos pode ou não pode controlar as imagens, os ecrãs, as vidas? Parece-me bastante clara a resposta. E é para isto que tento alertar continuamente a doutora. Mostrar-lhe como ela é prisioneira do programa da tecnologia e de quem a controla. Mas ela responde-me que estou a ser simplesmente paranóico. Serei?
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A doutora contou-me uma frase que Robert Wiener – um dos grandes pioneiros da cibernética – um dia escreveu:”Esta é uma ideia com a qual já antes brinquei – a de que é conceptualmente possível um ser humano ser enviado através dum fio telegráfico”. E continuou, já ela,”quando reduzidos aos nossos elementos mais básicos, somos compostos, mente e corpo, por informação”.
Às vezes tenho a sensação que tudo não passa de mera metáfora que cada época constrói sobre si mesma (e de caminho sobre todas as que a antecederam e sobre o futuro) e da qual nada restará noutro paradigma de pensamento. Ainda me lembro de um livro de ficção científica em que todo o universo em que vivemos – aquele cujos limites foram investigados por Einstein -- não era mais que um atómo do joelho – ou da rótula – de um ser imenso (relativamente). Nessa altura, talvez o elemento básico da mente e do corpo fosse o átomo. Depois mudámos de escala: entrámos nos niveís sub-atómicos. E ainda depois McLuhan explicou aos cegos deslumbrados o que era a luz e a electricidade. Hoje somos informação. Talvez informação biológica e analógica; talvez bits puros e eléctricos; talvez ambas as coisas, como explicaria Heisenberg.
Seja como for, Wiener descobriu a pólvora mesmo que tenha afirmado que ela não explode, não acha doutora?
Se um ser humano é informação – e não ossos, carne, e sangue – então ele pode, realmente,”enviar-se através dum fio telegráfico”. Não é o que faço todos os dias quando me sento ao computador e me ligo à Net?
...
say ‘keep within the boundries if you want to play.’
say ‘contradiction only makes it harder.’
how can I be?
what I want to be?
when all I want to do is strip away
these stilled constraints
shred this sad masquerade (6)
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Como recupero o meu corpo quando o envio através dos fios? Simplesmente, não recupero. Obtenho, em troca, informação que, não sendo eu, passa a fazer parte do eu. Toda a gente sabe que tudo o que”é digital, copia-se”, por isso não há nada que temer. E o eu, assim enviado, passa a fazer parte de um todo que não sou eu mas sou eu. Um todo ontológico e vibrante, uma noosfera viva mas não totalmente auto-consciente, um ciberespaço cujos principais pontos de entrada são, hoje, os ecrãs.
Não foi a doutora quem disse que”o jogador de jogos-vídeo já se fundiu com o computador. O jogador de jogos-vídeo é já um cyborg”?
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I’m the screen, the blinding light
I’m the screen, I work at night
don’t wake me with so much. the
ocean machine is set to 9

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«Não temos que rejeitar a vida no ecrã, mas também não temos de tratá-la como uma vida alternativa (...) À imagem do antropólogo que regressa a casa depois de estudar uma cultura estrangeira, o viajante da virtualidade pode regressar a um mundo real mais bem equipado para entender os seus artifícios”. Pois é isso mesmo. Somos acrescentados cada vez que estabelecemos uma relação de troca com os fios eléctricos. O que eu gostava de acentuar é que a energia não precisa, necessariamente, de fios. Do olhar ao ecrã e deste à nossa alma – eu sei que a doutora não tem grande apreço pelo termo – a informação flui através do éter. A fusão com o ciberespaço só é possível porque somos feitos da mesma coisa. Zeros e uns, provavelmente. Mas se invertermos a sua expressão, poderiamos dizer que os artíficios da realidade nos preparam para o mundo virtual. É este mundo cinzento de sombras que me torna o melhor quando estou online, quando estou ao joystick ou ao gamepad. Porque a tecnologia também é, ela, um imenso artíficio. O meu pai, que escrevia uma coisas para os jornais, entrevistou uma tal deusa do ciberespaço, Sandy Stone. Quer que lhe leia um trecho, doutora? É assim:”Sou extremamente desconfiada em relação ao modo como a tecnologia se está a desenvolver. Não nos vejo a dirigir a tecnologia de forma a melhorar as nossas vidas - muito embora seja isso que aparentemente acontece -, mas o que pressinto é que a tecnologia nos está a transformar de modo a melhorar a sua vida. E eu não estou segura de que o que a tecnologia quer é bom para nós, ou, até, se quer o mesmo que nós. Em segundo lugar, tal como uma série de colegas meus, estou a tomar consciência da tecnologia - e sobretudo a tecnologia da informação - como uma estrutura auto-reguladora, um superorganismo. Os humanos talvez sejam um fungo que aproveitou a boleia desse organismo que não entendemos. Nós, como humanos, somos auto-reguladores nas nossas sociedades, e se trouxemos à existência outro organismo auto-regulador, que realmente não conseguimos ver porque é tão vasto - tudo o que vemos são instâncias, como este gravador ou aquele computador -, então estamos a agarrar a cauda de um tigre invisível”.
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you allways say your name,
like I wouldn’t know its you,
at your most beautiful
...
you think this isn’t me?
that’s so sweet.
I’m so sorry.
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Está a perceber porque é que nós temos de emigrar para o ciberespaço? Passar para o outro lado do ecrã? Temos de nos fundir com a tecnologia de modo a controlá-la. Enquanto vivermos no exterior, vamos ser apenas alvos fáceis, carne para canhão. Eu nunca perderia um jogo de xadrez contra o Deep Blue, doutora, e sabe porquê? Porque nunca tentaria jogar como se o computador fosse o Karpov ou o Fischer. Eu jogaria sempre contra o que ele é: um programa com a memória de todos esses fantasmas. O problema do Kasparov foi jogar tridimensionalmente no tabuleiro. Não percebeu a lógica bidimensional dos zeros e dos uns.
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I save your messages
just to hear your voice
...
Mas”os indivíduos que vivem vidas paralelas no ecrã não deixam por isso de estar limitados pelos desejos, pela dor e pela mortalidade da sua pessoa física”, diz-me ela, quase sussurando, dobrada sobre a cadeira onde a amarrei. Sinto-lhe o terror. Mas eu só quero libertá-la. Eu amo-a. Desde a primeira consulta.
...
listen to the devils in my ear.
tell me what, what I want to hear
youre so funny, youre so fine.
youre so perfect, youre so mine.
...
Já ouço as sirenes lá fora. Devem ser os swat ou os spec ops que me vão tentar tirar daqui. Como estão enganados, conheço-lhes o modus operandi melhor que eles mesmos. Aliás, duvido que eles já tenham chegado ao último nível do Swat 2, devem estar imensamente atrasados nos treinos. O consultório está completamente armadilhado, nem o Pai Natal era capaz de impedir, agora, que me junte à doutora no ciberespaço. O único modo de entrarem por aqui é explodir com tudo. Explodir-nos os corpos ao essencial: informação. Libertar-nos para o outro lado do ecrã, onde a imortalidade virtual nos espera. A mim e à minha amada doutora. Até que a morte ou o game over nos separe.

(1) Todas as falas da doutora são citações de Sherry Turkle,”A Vida no ecrã”, Relógio d’Água, 1997. Tudo o resto é invenção.
(2) Lenga-lengas recolhidas por Peter e Iona Opie, autores de, entre outros livros dedicados às brincadeiras infantis,”The Lore and Language of School Children”, Clarendon Press, 1959. Uma nova versão deste livro pode ser encontrada aqui.
(3) Entrevista de Colin Greenland a William Gibson,”Foundation #36” (a tradução é de Paulo Faria).
(4) Howard Rheingold, numa”conversa” na BBS The Well.
(5) Apesar de historicamente verídico - o email recebido via Frank Boyd - a versão correcta de "An Incomplete Manifesto for Growth" está hoje online no website de Bruce Mau.
(6) Estes e seguintes são versos de canções do álbum "Up" dos REM.


 

Photobucket - Video and Image Hosting My events (curator/producer):

>Projecto Ibérica (Lisbon + Madrid 1988, new video creation from the Iberian Peninsula show and conferences)

>Convention Zero (Lisbon, 1996, science-fiction and new media convention, w/ Derrick de Kerckhove, Olu Oguibe, Leo Ferreira and Industrial Light & Magic)

>Art+Technology=Multimedia (Lisbon, 1997, multimedia workshop, w/ Andrea Steinfl and RealWorld)

>Robotica Tribal, by Chico MacMurtrie and Amorphic Robot Works, S. Francisco (Lisbon, 1997, show and exhibition)

>Convention 1.0 (Lisbon, 1998, new media convention and Internet workshop for youths, w/ John Perry Barlow and Derrick de Kerckhove)

>Festival do Fim (Lisbon, 1999, new media and music festival, w/ José Bragança de Miranda, Coldcut, Ninja Tune et al)

>Oeiras Image Festival 02 - "Under Surveillance/Sob Vigilância" (Oeiras, 2002, new media festival, w/ Manuel De Landa, Geert Lovink, David Wood, José Bragança de Miranda et al)

>Oeiras Image Festival 04 - "Síntese/Syntesis" (Oeiras, 2004, new media festival, w/ Marcos Novak, Catherine Malabou, Olu Oguibe, José Bragança de Miranda et al)