Competência para além do "bem" e do "mal"
[uma versão curta deste texto foi publicada no Jornal de Letras, Ano XXVI/nº 929, de 10 a 23 de Maio 2006]
Dizer que os videojogos "ensinam" é uma afirmação irrefutável. Resta saber que tipo de coisas ensinam ou, mais claramente, se o que ensinam pode ser ética e moralmente saudável ou se, pelo contrário, pode ser reprovável. Ao nível do gameplay, e reconhecendo-se que a imitação de comportamentos é das primeiras formas de aprendizagem, será certo que as acções que somos levados a consecutar no jogo, bem como as acções perpetradas pelos NPC (non-player characters), terão potencial de sugerir e influenciar comportamentos. O primeiro elemento que poderemos analisar nos videojogos, como mecanismo gerador de modelos comportamentais, é então a narrativa.
Neste caso entendemos a mensagem dos jogos como o seu conteúdo. Ou seja, que a mensagem dos jogos está ligada às suas tramas dramáticas (estórias), às acções comportamentais (avaliação e decisão) necessárias adoptar para se ter sucesso no jogo, ao sistema de recompensas (causa e efeito) e, até, aos seus objectivos e desenlace final.
Em “Carmageddon”, em que se ganham pontos por atropelar pessoas, ganham-se ainda mais pontos por atropelar uma mulher grávida. Este jogo exige-nos o comportamento mais vil como o caminho directo para a vitória. Mas na maior parte dos RPGs (role playing), como “Might and Magic” p.e., se formos capazes de nos desviar dos nossos objectivos imediatos para “ajudar uma donzela em apuros” provavelmente seremos recompensados com mais conhecimento, um objecto mágico ou outra coisa que nos ajuda na resolução do jogo. “Carmageddon” pede que nos aviltemos; “Might and Magic” pede que sejamos cavalheirescos.
Por vezes, contudo, estas diferenças de carácter ou comportamento não são tão óbvias. No jogo “Dungeon Keeper” compete-nos ser o guarda do inferno e, como tal, perseguir, punir e maltratar os heróis. Noutro jogo, por sinal graficamente semelhante, “Diablo II”, cabe-nos representar a ordem contra o caos. Apesar de existirem algumas diferenças em termos de mecânica do jogo, há um nível de competência nas acções e de similitude nos efeitos que se pode passar de um a outro sem repararmos que de “maus” nos tornámos “bons”, ou vice-versa.
Esta mudança de atitude pode ser ainda mais inconsciente. Em “Black&White” o jogador é um deus, controla uma população de súbitos obedientes e tenta converter outros. Ao ser magnânimo, fomentando o bem-estar entre a população, irá alimentar o seu poder divino na proporção directa da adoração dos fiéis. Mas há uma forma mais directa de alimentar esse poder: sacrificando os fiéis. Também aqui o poder aumenta na proporção directa de pessoas (NPCs) sacrificadas. A opção entre ser um deus complacente (e paciente) e um deus terrível está inteiramente nas mãos do jogador que, obviamente, cairá na tentação de experimentar as duas formas de ganhar o jogo. Outro título que nos permite experimentar várias pontos de vista é “Aliens vs Predator”, em que optamos por jogar como Alien, Predator ou como soldado humano (Marine). Se considerarmos que, de um ponto de vista moral, é o soldado humano que representa o “bem” – já que os outros são estranhos à nossa espécie – então também aqui nos confrontamos com uma perspectiva do “mal”, experienciada por inteiro na primeira pessoa.
Com estes exemplos chegamos a uma resposta óbvia: há jogos que parecem estimular comportamentos bons e jogos que parecem estimular comportamentos maus. Se tomarmos a pedagogia como a educação para o bem estar e adaptação do indivíduo à sociedade em que vive, então há jogos que são pedagógicos e outros que são claramente anti-pedagógicos, pois divulgam comportamentos anti-sociais e, até, criminosos. Esta classificação de “mau” ou “criminoso” refere-se, claro está, à ética e à moral do mundo real já que no mundo virtual dos jogos interessa saber, antes de mais, se o comportamento é competente ou não, se se enquadra dentro da estratégia para ganhar. Em “Hitman”, jogo cuja finalidade é tornarmo-nos um assassino profissional bem sucedido, matar por dinheiro é um comportamento de sucesso. É caso para dizer que os fins justificam os meios.
É este o momento de lembrar que esta fórmula de colocar o utilizador/leitor/espectador na pele ou no ponto de vista do criminoso não é um exclusivo, nem uma invenção, dos videojogos. Aponte-se o talentoso Mr. Ripley de Patrícia Highsmith ou o “Psicopata Americano” de Bret Easton Ellis como exemplos modernos da literatura e do cinema (ambos foram adaptados para filme).
Os argumentos que consideram que as narrativas ficcionais têm uma maior influência nos comportamentos do que a própria vida (real), não deixam nunca de me surpreender. A livre circulação de armas, a criminalidade, a miséria, as guerras e até o próprio sistema de ensino são percepcionados como tendo menor efeito na formação das gerações que o cinema ou os jogos. Não é possível olhar para os videojogos - seja em busca de uma pedagogia ou outra coisa qualquer - e ignorar o mundo em que existem: um mundo de comunicação em massa, de culturas globalizadas e do efeito CNN; um mundo de aquecimento global, de epidemias misteriosas, de desflorestação; um mundo de ecrãs, de redes telemáticas, de relações virtuais. Walter Wriston, o financeiro responsável pelo êxito do City Bank, costumava dizer em tom de brincadeira: “se é novo, é mau”. Todo o media, quando recente, atrai a atenção das pessoas desfasadas e confusas com o que acontece à sua volta, com os filhos que não entendem, com a tecnologia que não dominam. Talvez por isso Kumba Ialá, que foi presidente da Guiné, juntava na mesma frase “a Internet e outras feitiçarias”. Mas o problema não é a Internet, nem são os videojogos, nem é qualquer coisa em particular; é o mundo que é novo. Aliás, o mundo é e sempre foi, desde que o homem se tornou inteligente, um problema.
A minha infância, vivida há mais de trinta anos, foi pejada de jogos violentos. Parte das vezes, alguém acabou com alguma coisa partida: um nariz, um braço, o orgulho. Essa violência, porém, tinha lugar numa arena fora do alcance dos adultos. No pátio depois das aulas, na rua, nas traseiras do prédio. Raras vezes se quebrava um código de honra que estipulava que, mesmo sangrando, os adultos deviam ser mantidos na mais total ignorância dos nossos jogos perigosos.
Acontece que os jogos de computador sublimam essa violência, porque crescer rapaz parece exigir essa arena de desafio, de perigo, de afirmação e, quiçá, de fanfarronismo (e por alguma razão os jogos não atraiem tanto o sexo feminino). Os jogos de computador tornam a violência mais asséptica e infinitamente mais segura para a cana do nariz, mas quebraram o tal código de honra: trouxeram a violência para dentro de casa, mesmo para debaixo do olhar dos adultos; ou atraíram sobre si, e sobre os seus fait-divers, o interesse empolado do mass media. O jogo porém, nas suas múltiplas facetas – aprendizagem, entretenimento, conhecimento do outro – é um ritual ancestral, interpretado muitas vezes de forma mecânica que é, em si, uma transmissão de cultura.
O que nos leva a um outro ponto de vista, que melhor podemos analisar olhando a estrutura, e não o drama, do jogo. Nem todos os jogos têm por objectivo serem ganhos ou sequer invocam comportamentos de natureza ética ou estratégias. Um bom exemplo é o “Tetris”: trata-se de um desafio lógico-motor em que procuramos adiar pelo mais tempo possível o fim, mas não o podemos evitar.
Num jogo sem trama dramática, como é o “Tetris”, é mais fácil entender que a verdadeira mensagem dos jogos é o próprio media, como nos legou McLuhan: é a massagem dos fotões do ecrã na retina, a pressão digital (dos dedos) no joystick, joypad ou no teclado, o efeito de imersividade e a extensão da consciência. As experiências sobre a visão realizadas por C. Shawn Green e Daphne Bavelier da Universidade de Rochester, junto de jogadores e não-jogadores, indiciam que “a exposição de um organismo a um ambiente visual alterado facilmente resulta numa modificação do sistema visual do organismo”. Podemos assim afirmar que os jogadores possuem uma “visão melhorada” relativamente às pessoas que não jogam. Podemos suspeitar que experiências futuras sobre coordenação motora, agilidade e reflexos mentais, etc., certamente revelarão resultados semelhantes. Mais que pedagógicos, os jogos inscrevem-se na própria evolução humana. Como bio-organismos estamos a ficar mais competentes, não só para o mundo real mas também para o mundo que já é em larga medida virtual, e devemos isso aos videojogos.
Dizer que os videojogos "ensinam" é uma afirmação irrefutável. Resta saber que tipo de coisas ensinam ou, mais claramente, se o que ensinam pode ser ética e moralmente saudável ou se, pelo contrário, pode ser reprovável. Ao nível do gameplay, e reconhecendo-se que a imitação de comportamentos é das primeiras formas de aprendizagem, será certo que as acções que somos levados a consecutar no jogo, bem como as acções perpetradas pelos NPC (non-player characters), terão potencial de sugerir e influenciar comportamentos. O primeiro elemento que poderemos analisar nos videojogos, como mecanismo gerador de modelos comportamentais, é então a narrativa.
Neste caso entendemos a mensagem dos jogos como o seu conteúdo. Ou seja, que a mensagem dos jogos está ligada às suas tramas dramáticas (estórias), às acções comportamentais (avaliação e decisão) necessárias adoptar para se ter sucesso no jogo, ao sistema de recompensas (causa e efeito) e, até, aos seus objectivos e desenlace final.
Em “Carmageddon”, em que se ganham pontos por atropelar pessoas, ganham-se ainda mais pontos por atropelar uma mulher grávida. Este jogo exige-nos o comportamento mais vil como o caminho directo para a vitória. Mas na maior parte dos RPGs (role playing), como “Might and Magic” p.e., se formos capazes de nos desviar dos nossos objectivos imediatos para “ajudar uma donzela em apuros” provavelmente seremos recompensados com mais conhecimento, um objecto mágico ou outra coisa que nos ajuda na resolução do jogo. “Carmageddon” pede que nos aviltemos; “Might and Magic” pede que sejamos cavalheirescos.
Por vezes, contudo, estas diferenças de carácter ou comportamento não são tão óbvias. No jogo “Dungeon Keeper” compete-nos ser o guarda do inferno e, como tal, perseguir, punir e maltratar os heróis. Noutro jogo, por sinal graficamente semelhante, “Diablo II”, cabe-nos representar a ordem contra o caos. Apesar de existirem algumas diferenças em termos de mecânica do jogo, há um nível de competência nas acções e de similitude nos efeitos que se pode passar de um a outro sem repararmos que de “maus” nos tornámos “bons”, ou vice-versa.
Esta mudança de atitude pode ser ainda mais inconsciente. Em “Black&White” o jogador é um deus, controla uma população de súbitos obedientes e tenta converter outros. Ao ser magnânimo, fomentando o bem-estar entre a população, irá alimentar o seu poder divino na proporção directa da adoração dos fiéis. Mas há uma forma mais directa de alimentar esse poder: sacrificando os fiéis. Também aqui o poder aumenta na proporção directa de pessoas (NPCs) sacrificadas. A opção entre ser um deus complacente (e paciente) e um deus terrível está inteiramente nas mãos do jogador que, obviamente, cairá na tentação de experimentar as duas formas de ganhar o jogo. Outro título que nos permite experimentar várias pontos de vista é “Aliens vs Predator”, em que optamos por jogar como Alien, Predator ou como soldado humano (Marine). Se considerarmos que, de um ponto de vista moral, é o soldado humano que representa o “bem” – já que os outros são estranhos à nossa espécie – então também aqui nos confrontamos com uma perspectiva do “mal”, experienciada por inteiro na primeira pessoa.
Com estes exemplos chegamos a uma resposta óbvia: há jogos que parecem estimular comportamentos bons e jogos que parecem estimular comportamentos maus. Se tomarmos a pedagogia como a educação para o bem estar e adaptação do indivíduo à sociedade em que vive, então há jogos que são pedagógicos e outros que são claramente anti-pedagógicos, pois divulgam comportamentos anti-sociais e, até, criminosos. Esta classificação de “mau” ou “criminoso” refere-se, claro está, à ética e à moral do mundo real já que no mundo virtual dos jogos interessa saber, antes de mais, se o comportamento é competente ou não, se se enquadra dentro da estratégia para ganhar. Em “Hitman”, jogo cuja finalidade é tornarmo-nos um assassino profissional bem sucedido, matar por dinheiro é um comportamento de sucesso. É caso para dizer que os fins justificam os meios.
É este o momento de lembrar que esta fórmula de colocar o utilizador/leitor/espectador na pele ou no ponto de vista do criminoso não é um exclusivo, nem uma invenção, dos videojogos. Aponte-se o talentoso Mr. Ripley de Patrícia Highsmith ou o “Psicopata Americano” de Bret Easton Ellis como exemplos modernos da literatura e do cinema (ambos foram adaptados para filme).
Os argumentos que consideram que as narrativas ficcionais têm uma maior influência nos comportamentos do que a própria vida (real), não deixam nunca de me surpreender. A livre circulação de armas, a criminalidade, a miséria, as guerras e até o próprio sistema de ensino são percepcionados como tendo menor efeito na formação das gerações que o cinema ou os jogos. Não é possível olhar para os videojogos - seja em busca de uma pedagogia ou outra coisa qualquer - e ignorar o mundo em que existem: um mundo de comunicação em massa, de culturas globalizadas e do efeito CNN; um mundo de aquecimento global, de epidemias misteriosas, de desflorestação; um mundo de ecrãs, de redes telemáticas, de relações virtuais. Walter Wriston, o financeiro responsável pelo êxito do City Bank, costumava dizer em tom de brincadeira: “se é novo, é mau”. Todo o media, quando recente, atrai a atenção das pessoas desfasadas e confusas com o que acontece à sua volta, com os filhos que não entendem, com a tecnologia que não dominam. Talvez por isso Kumba Ialá, que foi presidente da Guiné, juntava na mesma frase “a Internet e outras feitiçarias”. Mas o problema não é a Internet, nem são os videojogos, nem é qualquer coisa em particular; é o mundo que é novo. Aliás, o mundo é e sempre foi, desde que o homem se tornou inteligente, um problema.
A minha infância, vivida há mais de trinta anos, foi pejada de jogos violentos. Parte das vezes, alguém acabou com alguma coisa partida: um nariz, um braço, o orgulho. Essa violência, porém, tinha lugar numa arena fora do alcance dos adultos. No pátio depois das aulas, na rua, nas traseiras do prédio. Raras vezes se quebrava um código de honra que estipulava que, mesmo sangrando, os adultos deviam ser mantidos na mais total ignorância dos nossos jogos perigosos.
Acontece que os jogos de computador sublimam essa violência, porque crescer rapaz parece exigir essa arena de desafio, de perigo, de afirmação e, quiçá, de fanfarronismo (e por alguma razão os jogos não atraiem tanto o sexo feminino). Os jogos de computador tornam a violência mais asséptica e infinitamente mais segura para a cana do nariz, mas quebraram o tal código de honra: trouxeram a violência para dentro de casa, mesmo para debaixo do olhar dos adultos; ou atraíram sobre si, e sobre os seus fait-divers, o interesse empolado do mass media. O jogo porém, nas suas múltiplas facetas – aprendizagem, entretenimento, conhecimento do outro – é um ritual ancestral, interpretado muitas vezes de forma mecânica que é, em si, uma transmissão de cultura.
O que nos leva a um outro ponto de vista, que melhor podemos analisar olhando a estrutura, e não o drama, do jogo. Nem todos os jogos têm por objectivo serem ganhos ou sequer invocam comportamentos de natureza ética ou estratégias. Um bom exemplo é o “Tetris”: trata-se de um desafio lógico-motor em que procuramos adiar pelo mais tempo possível o fim, mas não o podemos evitar.
Num jogo sem trama dramática, como é o “Tetris”, é mais fácil entender que a verdadeira mensagem dos jogos é o próprio media, como nos legou McLuhan: é a massagem dos fotões do ecrã na retina, a pressão digital (dos dedos) no joystick, joypad ou no teclado, o efeito de imersividade e a extensão da consciência. As experiências sobre a visão realizadas por C. Shawn Green e Daphne Bavelier da Universidade de Rochester, junto de jogadores e não-jogadores, indiciam que “a exposição de um organismo a um ambiente visual alterado facilmente resulta numa modificação do sistema visual do organismo”. Podemos assim afirmar que os jogadores possuem uma “visão melhorada” relativamente às pessoas que não jogam. Podemos suspeitar que experiências futuras sobre coordenação motora, agilidade e reflexos mentais, etc., certamente revelarão resultados semelhantes. Mais que pedagógicos, os jogos inscrevem-se na própria evolução humana. Como bio-organismos estamos a ficar mais competentes, não só para o mundo real mas também para o mundo que já é em larga medida virtual, e devemos isso aos videojogos.